Dissecando a metafísica da escassez

Anteriormente, criticamos a ideologia da escassez do ponto de vista da transformação da vida cotidiana [1], ou seja, na perspectiva concreta da práxis social-histórica; no entanto, alguns acreditam que, independentemente disso, a escassez continuaria válida como característica inerente ao tempo e ao espaço, como fundamento metafísico (geralmente usam o conceito termodinâmico de “entropia” para fundamentar essa ideia). Com isso, alguns supõem que, nesse universo entrópico, cada ser específico se pauta pela competição recíproca pela escasso, e, consequentemente, também os seres humanos e as sociedades, o que faria a forma social que a escassez toma, a propriedade privada (e, portanto, a sociedade de classes, o trabalho, o Estado e o capital), ter um fundamento eterno, cósmico e imutável. Neste texto, procuraremos criticar essa metafísica de um ponto de vista especificamente filosófico, físico e antropológico.

ANAXIMANDRO E DEMÓCRITO

A primeira expressão filosófica da metafísica da escassez que conhecemos foi exposta por Anaximandro, que dizia que o nascimento dos seres é dívida, e que portanto a vida é paga com a morte:

Todas as coisas se dissipam onde tiveram a sua gênese, conforme a necessidade; pois pagam umas as outras o castigo e a expiação pela injustiça, conforme a determinação do tempo.” (fragmento 1 de Anaximandro).

[Obs.: É evidente que essa visão moralista da natureza é uma continuidade dos mitos gregos de Diké e Nêmesis, deusas que personificam a “justiça”, a retribuição inelutável, a dívida inescapável, e que inexoravelmente “dá a cada um o que lhe é devido”. Como veremos, a metafísica da escassez continua até os tempos atuais fundamentalmente religiosa, mítica ou mesmo animista.]

De Anaximandro até nós, a maioria das filosofias se baseou em alguma metafísica da dívida, da troca de equivalentes, das recompensas e punições. Nos tempos modernos, o representante talvez mais respeitado (por causa de suas pretensões científicas) dessa metafísica é o entropismo, ideologia que afirma que, sendo o aumento da entropia (portanto, a morte) a regra geral do universo, cada ser é explicado por estar energeticamente submetido a uma relação de austeridade e dívida energética a ser estritamente equilibrada, compensada, paga no futuro.

Porém, uma outra corrente, subterrânea na história da filosofia, também se expressou ao menos desde a Grécia antiga: Demócrito e os demais materialistas afirmavam, de modo geral, que, se existimos, é porque somos gratuitos, supérfluos, já que não haveria nenhum sentido anterior à própria existência: seríamos fruto do acaso (Diné de Demócrito, Clinamen de Lucrécio) – e a necessidade (e portanto, o tempo) é a consistência de cada existente pela qual ele dura, expressa e desdobra essa gratuidade de, em e além de cada ser singular, ou seja, é sua liberdade. [2]

Desse modo, reconhecendo que a “regra geral da natureza” é a decomposição, destruição, aumento da entropia (p. ex., o tempo –  verificado pela morte, a que tudo está mais cedo ou mais tarde submetido – e o espaço – os corpos não ocupam o mesmo lugar etc – esse primeiro esboço do conceito de entropia já era conhecido pelos materialistas antigos), os materialistas concluem, ao contrário do que pensava Anaximandro,  que isso significa que cada ser específico que surge e perdura nesse universo se fundamenta na gratuidade, desperdício, superfluidade, dissipação.

Essa afirmação fica clara levando-se em conta o modo como os materialistas explicam o mundo: o tempo todo, no universo, incontáveis eventos ou composições (no caso, os atomistas pensavam nas combinações entre os átomos) acontecem simultaneamente, mas como a esmagadora maioria dessas composições não encontra consistência, elas não perduram, se decompõem e se dissipam rapidamente. Por esta razão, é improvável, raro, que algo singular exista além da decomposição praticamente instantânea. A improbabilidade de surgirem e existirem as exatas coisas singulares que percebemos perdurarem e se desenvolverem a nossa volta, assim como nós mesmos, é ainda maior, é praticamente infinita. É por isso que cada ser singular que surge e perdura no universo é gratuito, sem dívida, sem culpa, porque não possui nenhum sentido singular pré-escrito na “lei geral da natureza”, que é destruição dissipativa. Ou seja, é pela gratuidade, é pela superfluidade que existimos, agimos e criamos. Não devendo nada a alguma lei transcendental de escassez geral, até porque, na verdade, o que é geral não é escassez, mas abundância destrutiva, superfluidade dissipativa, “lei geral” que é responsável pela destruição, ao fim inevitável, mas não pela geração nem pela duração e tampouco pelo desenvolvimento dos seres (como diziam Lucrécio e Epicuro, na prática, “a morte não é nada para nós”). [3]

[Obs.: Não é difícil perceber que a ciência moderna, quando despida das intepretações que dão um viés escassista a ela, mostra que não é a austeridade contábil da troca de equivalentes, mas o desperdício e a dissipação é que é o fundamento de cada ser específico que surge e persiste.
Um exemplo básico é o do fluxo termodinâmico sol-> planeta Terra->seres vivos [4]: o sol dissipa uma imensamente colossal quantidade de energia pra todo lado sob a forma de partículas e ondas eletromagnéticas (uma parte da qual é a luz). Quase tudo isso é desperdiçado em direção ao vazio espacial. Uma pequenina parte dessa energia desperdiçada do sol, mas ainda colossal, se dissipa por acaso na Terra. A Terra dissipa igualmente essa energia para todo lado, enquanto uma parte é desperdiçada nas bactérias e plantas que fazem fotossíntese. As bactérias e plantas também dissipam abundantemente “à toa”, e parte dessa dissipação é desperdiçada nas outras bactérias, insetos e herbívoros que as devoram com superfluidade. Estes últimos são desperdiçados nos predadores, que também devoram uns aos outros avidamente, num gritantemente notório desperdício vão de energia. E parte da dissipação de todos esses seres, por sua vez, é desperdiçada nos humanos, que também desperdiçam essa energia “à toa”, criando gratuitamente suas relações, a sociedade, a indústria, o conhecimento, a arte, a linguagem, cidades, imaginação, engenhosidade etc.
Apesar de no modelo explicativo dos materialistas antigos não existir ainda essa visão termodinâmica, ela é em grande parte compatível. O sol, como tudo mais (inclusive nós), é considerado uma composição de átomos surgida fortuitamente em determinado momento, e que está se desintegrando continuamente, se dissipando para todo lado até morrer (sua luz é o resultado dessa desintegração). Porém, se quisermos deter o desperdício (acumulando,  “conservando”), o resultado é que o sol morreria mais rápido, ou até instantaneamente numa explosão, e não teria tempo para “sua natureza”, suas ricas potencialidades qualitativas, se desenvolverem e se expressarem ao máximo.]

Contudo, essa visão global não é e nem pretende ser “reconfortante”. Ela não fornece nenhum princípio ético e tampouco qualquer modelo para uma sociedade melhor. Dado que a “lei geral da natureza” é abundância destrutiva, desperdício dissipativo, a ideia de “ordem natural” (ou “equilíbrio natural”), ideia que pressupõe a crendice em alguma espécie de “mão invisível”, é uma infeliz invenção da imaginação humana. Ela simplesmente não existe na natureza.

O CREDO NA “MÃO INVISÍVEL”  (OU “ORDEM NATURAL”, “EQUILÍBRIO NATURAL”): MORALISMO E TEODICEIA

O fato é que a natureza é incessante desequilíbrio cego e indiferente, um conjunto de forças completamente insensíveis ao sofrimento, assassinato, tortura, abundância, escassez, e à própria vida de todos os seres vivos. Além da história de catástrofes sem fim da geologia e atmosfera do planeta terra, assim como dos planetas, asteroides, sois e cometas, basta observar a notória superfluidade destrutiva da cadeia alimentar. Mais de 99,99% dos seres vivos vive de ferir e/ou devorar outros seres vivos, a tal ponto que nem sequer os seres mais inofensivos da cadeia alimentar, como as plantas, são “pacíficos”, mas venenosos para outros (traduzindo: assassinos; aliás são dos venenos das plantas que vem todas as propriedades medicinais delas que usamos graças à nossa ciência, empiria e técnica), espinhentos (traduzindo: torturadores), monstros vorazes para muitos outros pequenos seres ingênuos que metem seus bedelhos neles (fungos e bactérias, por exemplo, atacados pelo sistema imunológico vegetal)  etc. Isso sem falar da interminável competição cega dos seres por nichos que extinguiu 99,99% de todas as espécies que já existiram na terra desde o surgimento da vida. Até mesmo uma das moléculas mais básicas necessária à nossa vida atual na terra, o oxigênio, um gás venenoso para os primeiros seres vivos, foi introduzida “artificialmente” na atmosfera (antes predominantemente de CO2) pelos primeiros seres a fazer fotossíntese (provavelmente cianobactérias), levando a uma extinção em massa colossal.

Por outro lado, justamente porque o desperdício destrutivo é a regra geral da natureza, cada ser singular que existe e persiste necessariamente se pauta, ao contrário, pelo desperdício construtivo, criativo, afirmativo, pelo qual afirma sua existência [5]. Porém, a medida em que cada uma dessas abundâncias afirmativas singulares se expressa em um meio comum indiferente e cego, o resultado de suas expressões tende a se voltar contra elas mesmas, ou seja, nessas circunstâncias cegas ocorre o efeito colateral de a afirmação de cada uma tender a decompor e negar a afirmação das outras e, daí, cada uma nega a si mesma mediante as outras. Isso porque, se as expressões construtivas continuarem afirmando essas circunstâncias cegas e indiferentes para se expressarem, elas intensificam as condições que as obrigam a deter a expressão do dinamismo de sua riqueza, a conter a abundância de suas relações com os outros, a se embotar, acumular, competir, se privar e, por fim, a se engajar na destruição supérflua de si própria.

A metafísica da escassez, no entanto, “naturaliza” essas circunstâncias, santifica esse estado de coisas cego, até o ponto de extrair dele todo um “moralismo da escassez” que busca justificar e exaltar o sofrimento, esgotamento, tortura e morte como “feedback negativo” (retroalimentação negativa) objetivamente necessário à conservação, preservação e regulação “holísticas” da natureza e da sociedade. É uma verdadeira teodiceia, uma autêntica religião, esse culto da “mão invisível”.

Não é por nenhuma “regra geral da natureza”, nenhum “holismo”, mas apenas a partir das abundâncias afirmativas singulares que a espécie humana – cuja singularidade é que seus indivíduos são capazes de desejar, pensar, se comunicar e agir – pode desenvolver uma ética e, portanto, um projeto de transformação tanto das relações sociais quanto de suas condições naturais. Se somos supérfluos, então é completamente arbitrária qualquer ideia de dívida ou culpa, de justificativas, teodiceias, assim como qualquer remuneração por qualquer tipo de equivalência de “valor”, pois não há qualquer ser transcendente que “retribua à cada um a sua parte”. Pelo contrário, se os singulares são supérfluos é precisamente porque se justificam por si sós, pela sua simples existência, composição e expressão.

Trata-se então, para os seres humanos, de transformar as circunstâncias de modo que, nelas, as capacidades e necessidades humanas possam se afirmar como válidas por si sós, e não mais como instrumentos, meios e objetos de julgamento e retribuição conforme uma maior ou menor obediência a um fim pré-determinado (valor, mercado, propriedade privada, Estado, religião, identidade, nacionalidade, gênero etc). A liberdade é a necessidade irretribuível de cada singular, porque eles e suas expressões valem por si mesmos, são fins em si. Portanto, liberdade é: “de cada um segundo suas capacidades, à cada um segundo suas necessidades”. [6]

[Obs.: Isso contrasta com a ideia equivocada de que liberdade é livre-arbítrio. Livre-arbítrio nada mais é do que escolha de elementos em circunstâncias pré-estabelecidas, aceitando essas circunstâncias como imutáveis. Essa liberdade é ilusória, já que a imposição do livre-arbítrio, da livre-escolha, é a base de qualquer relação de dominação. Isso porque o único modo da classe dominante colocar-se como dominante é tendo o poder de retribuir, com prêmios ou reprimendas, a submissão maior ou menor dos dominados, o que só é possível se eles dão aos dominados a liberdade de escolher, entre duas ou mais coisas, caminhos ou ações predeterminadas, pré-fabricadas, pré-armadas pelos dominadores. Somente assim podem julgar quem é mais ou menos obediente (julgar o “livre arbítrio” ou “deliberação”, “esforço”, “mérito” deles), retribuindo a cada um em vistas a intensificar as circunstâncias de competição que levam os explorados a continuarem ou até aumentarem sua sujeição. Livre-arbítrio implica sempre em submissão às condições pré-estabelecidas de escolha. A verdadeira liberdade, pelo contrário, só começa pela transformação das circunstâncias, das condições de existência. Ou seja, liberdade pressupõe que essas condições deixem de ser propriedade privada (abolindo assim do poder dos dominadores) e se tornem as condições comuns da livre expressão prática dos indivíduos livremente associados sem fronteiras (comunismo).]

Como já expomos em outro texto uma ética imanente, materialista [7], trataremos agora das alegações pretensamente científicas dos adeptos da metafísica da escassez, em especial o entropismo.

FETICHISMO DA MERCADORIA, CIÊNCIA E CIENTIFICISMO NA IDEOLOGIA DA ESCASSEZ

Que os seres já surgidos comecem inevitavelmente a se desintegrar, a se dissipar até desaparecerem (entropia), não há dúvidas disso. Mas essa, como vimos, não é toda a história. Porque há também atividade, atuação: essa dissipação supérflua pode gerar (ou não) outros seres singulares (dentro e/ou fora de dele mesmo e/ou entre e/ou além) igualmente supérfluos, assim como aqueles seres que já tinham surgido também foram gerados pela dissipação supérflua de outros seres que confluíram nele e o compuseram. É nessa parte da história (e não na parte “status quo em perigo”) que está tudo que conhecemos, fazemos, experimentamos e nós mesmos. A atual ideologia da escassez com pretensões científicas é míope, porque ela se ocupa exclusivamente da dimensão de dissipação estéril dos seres já surgidos, só enxergando formas pré-existentes, e generalizando isso na visão de um universo austero regulado pela troca de equivalentes, numa competição pela escassez que recompensa ou reprime conforme um padrão pré-estabelecido, transcendente. Com isso, essa ideologia é incapaz de se dar conta do surgimento, da atividade, do vir-a-ser, do devir, mas apenas do “status quo”, do já existente.

Em que se baseia essa miopia? Ou melhor, epistemologicamente, em que situação material, a atividade, o devir, não podem aparecer, ficando ocultos? Isso só é imaginável numa circunstância material em que cada devir ou atividade singular é separado e isolado dos outros, de suas relações específicas, e unificados sob uma mesma forma geral pré-existente.

É precisamente assim a sociedade capitalista: as múltiplas atividades singulares assumem a forma de “trabalho”, em que cada devir é privado (propriedade privada) de suas relações para ser incessantemente remetido à comparação com outros (competição) conforme um mesmo padrão geral pré-estabelecido de equivalência quantitativa abstrata: o valor, a troca de mercadorias, o dinheiro, o Estado. Trata-se de uma sociedade em que, privada das condições materiais de atuação, a atividade produtiva humana só é permitida se for serviçal da reprodução ampliada do trabalho morto, do capital, do lucro; em que os produtos das atividades humanas simultâneas que abrangem o mundo inteiro, aparecem aos próprios seres humanos não como expressões de sua atividade associada em escala global, mas, pelo contrário, como se os produtos resultantes fossem dotados de uma existência independente, como propriedade privada, empresa, mercadoria, capital e Estado, em suma, como mercado mundial. Isso porque, privados de suas condições de existência, os seres humanos se tornam impotentes enquanto seres humanos, e, para sobreviver, são forçados a alienar (vender) suas capacidades de agir e de pensar à quem tem a propriedade privada dessas condições; consequentemente, as capacidades humanas são atribuídas às coisas, à propriedade privada, à classe proprietária (os capitalistas, i.e., o empresariado particular e estatal). Os seres humanos encontram suas próprias capacidades como atributos não deles mesmos, mas do dinheiro, da propriedade privada, da empresa e do Estado, personificados como um poder alheio, privado e hostil (o capital) na classe dominante. É uma determinada relação social entre os homens que assume, a seus olhos, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas (fetichismo da mercadoria). [8]

Então, em um ambiente onde todo devir é incessantemente remetido à reprodução ampliada do trabalho morto, os seres singulares não aparecem socialmente, publicamente, como atividades, mas como rastros, resultados, produtos, mercadorias, instrumentos, “serviços”, “trabalhos”.

E nesse ambiente também estão os que fazem ciência. Ninguém tem acesso “sobrenatural” à natureza (se alguém afirma isso, esse alguém é religioso, não cientista), porque inclusive os cientistas são seres naturais. Eles perscrutam a natureza tal como ela lhes aparece, e tal como eles a fazem aparecer mediante instrumentos, metodologias e experimentos. Alguns aspectos do que lhes aparece é realçado e destacado em detrimento de outros pela simples razão de que o que pode aparecer a eles passa inerentemente por suas relações sociais: um cientista pode ser um trabalhador assalariado (ao invés de fazer ciência em livre associação com outros no mundo inteiro que também desejam e fazem ciência como um fim em si, como atividade livre), seus instrumentos, componentes e insumos são comprados (ao invés de terem sido determinados livremente pela sua atividade em associação com outros que, no mundo, desejam produzi-los), e também a determinação e escolha de seus objetos de estudo exprimem necessidades e capacidades humanas formadas e desenvolvidas em específicas relações sociais.

Assim, por exemplo, os conceitos de “trabalho” e “energia” foram separados dos demais conceitos da física e cunhados com esses nomes próprios (tornando-se inclusive os conceitos centrais das ciências naturais) no preciso momento da revolução industrial (séculos XVIII-XIX), quando o capital (que então se tornou produtivo, industrial) colocava a questão de extrair o máximo de trabalho “útil” das forças naturais e humanas disponíveis, com o propósito de aumentar ao máximo a diferença entre os custos de produção e os preços de venda de seus produtos, ou seja, os lucros. Foi a partir do problema do “peso levantado até certa altura” no uso, por empresas mineradoras, dos primeiros motores à vapor para levantar baldes de água de minas alagadas, que, em 1826, Gaspard-Gustave Coriolis introduziu na física o conceito de “trabalho” e seu nome próprio. Já o de “energia”, foi introduzido em 1807, por Thomas Young. Antes disso, os conceitos centrais da física eram os de “momento de inércia” e “força” (como em força da gravidade, força elétrica, força magnética etc) [9].

Isso não quer dizer, é claro, que, no século XIX, a ciência “tenha errado” e nem que esses novos conceitos sejam “falsos”, mas sim que os cientistas perscrutam o mundo, com sua rigorosa metodologia, a partir das circunstâncias com que se deparam, a partir dos problemas e perspectivas que essas circunstâncias colocam. Desse modo, toda ciência que desde o século XIX se desenvolveu a partir dos conceitos de “energia” e “trabalho” (em especial o de “conservação de energia”) realmente foi se tornando cada vez mais capaz de explicar de maneira inigualável e precisa as condições precedentes para qualquer evento. No entanto, é míope para os próprios eventos em questão, porque eles são tomados como formas já existentes, já conhecidas, e não enquanto devires, atividades. A razão disso é que, na sociedade capitalista, como vimos, os seres singulares, humanos e não-humanos, não aparecem socialmente, publicamente, como atividades, como atuações, como devires, mas como rastros, resultados, produtos, mercadorias, instrumentos, “serviços”, “trabalhos”; então, qualquer análise científica objetiva dos seres nesse ambiente (sociedade capitalista) encontra-os apenas como seres privados de e subservientes às suas condições de existência precedentes que se acumulam como trabalho morto, propriedade privada, capital.

No entanto, ao contrário dos cientistas que permanecem rigorosamente objetivos, os adeptos da metafísica da escassez encontram esses conceitos científicos, que expressam objetivamente o que pode ser apreendido da natureza a partir das necessidades e capacidades humanas desenvolvidas na sociedade atual, e se apropriam deles para compor uma religião cientificista que naturaliza, justifica e exalta a (auto)repressão, a máxima coerção ao trabalho, a intensificação da competição, o ascetismo, o exclusivismo e o banimento. Tudo em nome da preservação de um “status quo” que teria sido fruto meritório de um árduo, esforçado, “complexo”, “equilibrado” e sofrido passado cujo questionamento, na opinião deles, poria “tudo a perder”.

IDEOLOGIA APLICADA DA ESCASSEZ: ECONOMIA E ECOLOGIA

Por fim, vale a pena se deter nas peripécias da palavra e do conceito de “economia”, que são muito curiosas. Ela chegou até nós, da Grécia antiga, através da teologia.

Inicialmente, na Grécia, oikonomia era como se designava o comando, a administração (nomos, em grego), pelo pai/senhor (despotes, kyrios), dos escravos/servos de sua propriedade (oikos). Essa propriedade era ao mesmo tempo residencial, agrícola e escravista. Já fora da oikonomia, na polis, a relação entre os proprietários de escravos era chamada polítika, em que os senhores se consideravam iguais (isonomia, isegoria, isokratia). Em contraste, na propriedade escravocrata, no oikos, se constituia a família (oikogéneia), composta por aqueles sobre os quais o despotes tinha poder de vida e de morte: os escravos e servos, entre os quais se incluíam sua mulher e os filhos, além dos fâmulos adquiridos. Este foi o primeiro sentido da palavra. [10]

A seguir, quando o cristianismo se impôs (séculos III-XV) nas regiões em torno do mar Mediterrâneo e depois em toda Europa, o mundo e a humanidade passaram a ser considerados uma propriedade doméstica (oikos) comandada (nomos) por deus (providência). O governo de deus sobre o mundo, a execução pelos homens do comando de deus mediante o poder da igreja, dos reis e dos senhores feudais, a teodiceia (justificação dos sofrimentos e do mal), o gênesis, o plano de salvação e julgamento da humanidade no apocalipse, tudo isso tinha um nome: economia, economia da salvação, economia divina. E este foi o segundo sentido. [11]

Depois, na época do mercantilismo (séculos XV-XVIII), quando o capitalistas começaram a se impor e a transformar o mundo inteiro (colonização de quase todos os continentes etc) através dos Estados mercantilistas (que foram os primeiros Estados no sentido moderno do termo, o de ser uma entidade distinta das castas, da “sociedade civil”) que eles financiaram para impor pela força das armas o comércio e o monopólio de rotas comerciais em todo planeta, as categorias do pensamento religioso, inclusive “economia”, começaram a ser secularizadas. Nesse período, “economia” era como se chamava a administração governamental dos Estados mencantilistas, que eram monarquias absolutistas e que se acreditava serem fundadas por “direito divino” ou pelas bençãos do papa. Tal foi o terceiro sentido. [12]

Por fim, o quarto e último: na revolução industrial, no fim do século XVIII, quando o capital assumiu a produção (que antes era pré-capitalista, enquanto capitalista era apenas o comércio dos produtos), sugindo o capital industrial (graças à imposição do trabalho assalariado, só possível mediante a sistemática separação dos componeses e artesãos de seus antigos meios de vida, formando o proletariado), as categorias do pensamento religioso cristão foram plenamente transcritas para uma “religião secular objetivista”, em que uma curiosa “mão invisível”, por vias indiretas e misteriosas, governaria tanto mais para melhor quanto maiores os sofrimentos, sacrifícios e esgotamentos dos seres humanos privados de meios de produção (proletários) na concorrência desesperada por conseguir sobreviver vendendo a única coisa que ainda possuem, ou seja, a si mesmos, no mercado de trabalho, aos proprietários privados desses meios (capitalistas), em troca do salário. Essa entidade misteriosa (a economia) promoveria tanto maior prosperidade quando mais os proletários se engalfinhassem por obedecer e se sacrificar à classe proprietária.


Então, a palavra “economia”, do berço escravocrata passando por suas vestes teocráticas adultas, desembocou na designação de um tipo de entidade religiosa que não é mais identificada como religiosa, mas como a própria “verdade absoluta”, “a realidade tal como ela é de fato e à qual é dever se curvar”. É uma espécie de neo-animismo [13]. A economia, em suma, é o próprio fetichismo da mercadoria, que surgiu com o domínio do capital sobre a sociedade mundial. Esse domínio se caracteriza pela ditadura da produção pela produção que é o trabalho assalariado, em que, como vimos, os produtos das atividades humanas aparecem aos próprios homens não como resultados de sua atuação associada, mas como uma força independente, autônoma, como se se produzissem, se movessem e se distribuíssem mediante uma lógica própria e misteriosa: “sistema de preços”, “oferta e procura”, “mão invisível”, “destruição criadora”, “demanda agregada” etc.

Por outro lado, se a economia é uma teodiceia, justificando os sofrimentos, sacrifícios e males em nome de algo imaginário que por vias misteriosas promoveria o bem geral, não menos pior é a ecologia.

O movimento ecológico moderno se baseia em conceitos da “cibernética”, “holística” e “teoria de sistemas” (todos eles variantes da metafísica da escassez) visando reestabelecer politicamente o “equilíbrio natural”, a “sustentabilidade”, a “homeostase” do organismo holístico que seria a natureza como um todo. O processo homeostático em questão englobaria todos os seres, os quais, nas suas interações, estabelecem “feedbacks negativos” (mortes, escassez e catástrofes) responsáveis por manter a sustentabilidade do sistema ao longo do tempo ao contrabalançar os 1920px-ideal_feedback_model.svg_-1“feedbacks positivos” (por exemplo, reprodução sem freio de uma espécie) que de outro modo se acumulariam, levando ao colapso do sistema. O erro dos seres humanos, segundo eles, foi interferir no processo holístico da natureza, que seria tão complexo que seria impossível de ser compreendido pelos humanos (cuja atuação pressupõe sempre um conhecimento inerentemente “reducionista”), de tal modo que quando estes interferem, o resultado seria sempre catastrófico.

Mas já vimos que a natureza é, de fato, incessante desequilíbrio, um conjunto de forças cegas e indiferentes, e a ideia de uma “ordem natural” não passa de invenção da imaginação humana. Se a humanidade quiser por em prática a ficção ecológica de uma “ordem natural” independente dela, ela terá que se entregar a esses processos cegos, violentos e indiferentes, “naturalizá-los” e aceitar agir do mesmo modo. Quando se faz isso, a morte e o sofrimento de cada um passam a ser considerados uma prática aceitável (como “feedback negativo” necessário à “homeostase”) para que o suposto todo, o sistema holístico, seja sustentável. Trata-se de uma teodiceia tão mitológica que é praticamente uma recriação dos ritos sacrificiais de “restauração da ordem cósmica” do antigo paganismo. Mas, como toda mitologia, teologia e religião, isso não existe na natureza, é uma invenção delirante especificamente humana. Nenhum outro ser vivo age mediante uma “percepção imaginária extraterrena” (holística) de si mesmo no mundo, indiferente ao seu próprio sofrimento e morte, em nome da uma imaginação demente em sua cabeça.

[Obs.: Ainda mais perturbadora é a história da ecologia [14]. A palavra e o conceito de “ecologia” foram introduzidas por Ernst Haeckel (1834-1919), que pregava que a natureza é um organismo unificado e equilibrado (oikos), e que a sociedade humana deve ser reorganizada de acordo com a lógica da natureza (daí,com oikos e logos, cunhou a palavra ecologia). Anti-iluminista, nacionalista e eugenista, ele foi o primeiro a usar a teoria da evolução das espécies para propor uma classificação hierárquica das raças humanas. Segundo ele, “a política é biologia aplicada”. Sua teoria ecológica, através da esotérica e espiritualista Sociedade Thule, na qual participava, se vinculou diretamente às origens da ideologia nazista. Esta última afirmava, baseando-se também nas teorias da competição do economista liberal Herbert Spencer (darwinismo social) e no misticismo racista de Madame Blavatsky (teosofia), que o equilíbrio orgânico da ordem natural primordial (ao mesmo tempo biológica, divina e mística) decorreria da competição sem tréguas de cada um (cada indivíduo, cada nação, cada raça) por ocupar nichos na “ordem natural”. O primeiro governo que colocou a ecologia como meta principal foi o nazista, criando as primeiras reservas naturais, leis de proteção dos animais e inclusive tentando se basear na agricultura orgânica, além, é claro, dos campos de extermínio.]

Evidentemente, criticar a ecologia não significa que defendemos a destruição do meio ambiente. O que afirmamos é que, como não existe nenhum ponto referencial “superior” (como a fantasia mitológica/teológica de uma providência chamada “natureza”, “gaia”, “ordem natural”) fora das necessidades e capacidades dos próprios seres humanos para eles mesmos decidirem suas vidas e suas ações, a questão de não destruir o ambiente natural em que vivemos e os demais seres vivos só pode ser levantada e assumida por nós mesmos, pelos seres humanos, a partir do que considerarmos (mediante conhecimento, ciência, ética, técnica, desejo etc) necessário fazer e capacitados para fazer. Simplesmente porque, para agirmos, só temos as nossas próprias capacidades e necessidades, com as ideias, ciência e práticas que criamos a partir delas, e com as quais pensamos e agimos com algum êxito ou não.

humanaesfera, fevereiro de 2017

POST SCRIPTUM: CURIOSIDADE: O EPITÁFIO DE SÍCILO

Este é o mais antigo exemplo encontrado de uma composição musical completa, o Epitáfio de Sícilo. A música, cuja melodia foi registrada junto com a letra, foi encontrada gravada em uma lápide, perto de Aidin, na Turquia (não muito longe de Éfeso). A descoberta foi datada de entre 200 aC e 100 dC.

Letra:

Enquanto viver, brilhe
Não te entristeças por nada
A vida dura um breve instante
E o tempo cobra seu tributo

A lápide continha o seguinte escrito: “Eu sou um túmulo, um ícone. Sícilo me pôs aqui como um símbolo eterno da lembrança imortal“.

A letra pode ser interpretada como expressando a ideia de vida como gratuidade, delicada, frágil e alegre, enquanto o tempo, que destruirá tudo cegamente (entropia),  confirma nela sua abundância supérflua e irretribuível.


ADENDO: A ILUSÃO DA “DÁDIVA” PRÉ-CAPITALISTA

Potlatch

Conhecer o passado ajuda a saber que nem a sociedade capitalista, nem a troca de mercadorias, nem a família nuclear e nem o Estado são eternos e que a humanidade viveu por muito mais tempo de outra maneira. Porém, alguns perscrutam o passado acreditando que antes da sociedade capitalista, vivíamos “naturalmente” (conforme uma suposta “ordem natural”) enquanto que agora viveríamos “artificialmente”. Um dos temas prediletos e mais exaltados por quem assim pensa é o da “dádiva”, “dom” ou “troca de presentes” (cujo exemplo mais conhecido é o potlatch), um modo de distribuição dos produtos que contrasta com a troca de mercadorias generalizada que caracteriza a sociedade capitalista. Eles chegam ao ponto de considerar a “dádiva” pré-capitalista como o modelo “natural” para uma nova sociedade após a atual. Acreditam que a “dádiva” expressaria abundância em uma ordem social supostamente natural que querem restaurar, enquanto que, na verdade ela era um mero sistema de alianças por dívidas. Aqui queremos brevemente mostrar que as condições pré-capitalistas que faziam a “dádiva” fazer sentido não só são sem retorno, como também são absolutamente indesejáveis por qualquer um em sã consciência hoje.

Antes de tudo, como Mauss e Malinowski mostraram, a dádiva das sociedades tribais era um sistema de coerção endividada, inclusive, muitas vezes, um sistema de dominação brutal de alguns clãs sobre outros [15].

Em sociedades tribais em que os clãs não se hierarquizavam, o “dom” consistia  em laços coercitivos resultantes da desconfiança entre tribos sempre à beira da guerra entre si (segundo Pierre Clastres, era esse estado de guerra generalizada que impedia o surgimento do Estado, o surgimento das castas [16]). O “dom” era o rito de uma guerra invertida, em que cada lado, sempre extremamente desconfiado, tinha que provar sua confiança no outro clã através da concorrência de dar mais no futuro do que recebeu de presentes. O fato de não dar imediatamente quando se recebia era considerado uma prova de que não se desconfiava do outro clã, e que os laços entre eles seriam mantidos. Mas caso algum lado, por qualquer razão, fosse considerado apressado em retribuir ou se passasse a retribuir com menos (ou mesmo se achasse antecipadamente que o outro ai achar qualquer dessas coisas), isso era considerado prova definitiva de desconfiança, de quebra de laços. E então declarava-se guerra. A guerra era fundamental, porque se não fosse declarada guerra, formar-se-ia uma relação em que um clã se sobrepõe a outro (castas). Sem guerra nas sociedades tribais, o dom se torna dívida “infinita” de um clã (o que dá menos) para outro (o que dá mais), a ser paga como sujeição de castas, fazendo surgir o Estado (no sentido pré-capitalista de domínio de uma casta sobre outras). Na antropologia, esse é o caso mais clássico de todas as “dádivas”, o potlatch, praticado por uma sociedade de castas da América do Norte [17].

O que é evidente é que a dádiva tribal não parece de nenhuma maneira servir como modelo para nós hoje. A própria possibilidade do “dom” pressupõe a propriedade coletiva tribal sobre objetos produzidos por ela privadamente diante de outra propriedade coletiva tribal de outros objetos produzidos privadamente frente àquela e vice-versa. Pressupõe portanto, a troca entre propriedades privadas (propriedades que eram pré-capitalistas, mas ainda assim, de fato, coletivamente privadas reciprocamente), que é “dom” (laços de dívida) enquanto não é guerra e que se torna mercado (por exemplo, escambo) durante a guerra declarada, quando cada lado exigia uma retribuição imediata, rápida, de bens, “com valor equivalente”, “justo”, porque então já não confiavam absolutamente um no outro.

Hoje, os meios de produção são materialmente comuns em escala mundial (nada, nem em termos físicos nem intelectuais, é produzido privadamente), e, consequentemente, na perspectiva atual de um mundo libertário (ou seja, comunista), o desfrute das forças produtivas não pode ser nem “dom” nem troca de mercadorias, mas uma auto-realização autônoma e gratuita propiciada pelo livre acesso por todos às forças produtivas comuns, que são as condições de existência (meios de produção) mundialmente interconectadas.

Mas voltemos às sociedade pré-capitalistas para ter uma noção melhor das condições concretas nas quais se encontravam e reproduziam suas relações sociais. Para cada tribo, todos os outros humanos eram  bestas, não-humanos ou falsos humanos (e eram assim denominados), contra os quais, como vimos, se estava em estado de guerra constante ou latente. Para marcar o pertencimento à essa suposta única tribo dos “verdadeiros humanos” (cada uma se considerava assim), que seriam os mais fortes e superiores, cada nova geração era submetida a ritos de passagem como provação do “merecimento” de pertencer à seu clã em exclusão de toda humanidade. Esses ritos escreviam literalmente na carne e na alma as marcas de pertencimento: mutilações, humilhações, várias provas de resistência à dor, provas de que não se é “frouxo” ao assassinar inimigos sem hesitação, adquirindo cicatrizes de guerra etc. Evidentemente, as novas gerações eram forçadas a se submeter porque não havia meio de satisfazerem suas necessidades fora da tribo, exceto se desejassem a solidão da natureza inclemente, vulneráveis às tribos e feras inimigas. E se se juntassem para criar uma outra tribo independente, eles seriam obrigados a recriar as mesmas provações dos ritos de passagem e as mesmas violências para com as outras tribos. Porque isso não depende só da vontade, mas das condições de existência materiais, ou seja, da capacidade humana de, com as forças produtivas existentes, transformar a natureza, a circunstâncias, as condições concretas das relações humanas. Eram as condições com que se deparavam que materialmente os obrigava a adotar todas essas coerções, se agrupando na forma social de tribos.

Assim como explicamos antes sobre o meio ambiente quando criticamos a ecologia, criticar as condições de existência das sociedades pré-capitalistas não quer dizer que defendamos que as tribos que ainda hoje existem não devam existir e nem que os que sentem atração pelo modo de vida delas devam “se reprimir”. Na verdade, essas tribos, queiram ou não, há muito tempo não estão mais naquelas condições antigas (exceto, talvez, algumas, raríssimas, isoladas, na América do Sul e na Papua Nova Guiné). E seus mitos e ritos são recriados e modificados a cada geração conforme as condições em que elas se encontram e se reproduzem, que são hoje as da sociedade capitalista. É compreensível que, nesta sociedade (capitalista) onde a condição para sobreviver é se submeter à competição infernal da propriedade privada com a propriedade privada, os seres humanos dessas tribos remanescentes também busquem uma propriedade privada que garanta sua sobrevivência em exclusão de todos os demais humanos que competem igualmente pela sobrevivência. Então, para isso, o que geralmente tentam é fazer de seu passado um signo de propriedade a ser protegido pelo Estado (ou, como ocorre em alguns lugares do México, por suas próprias milícias). Porém, isso certamente nada tem de realmente libertário, nada tem a ver com superar a sociedade capitalista, porque é uma mera adição de uma propriedade privada a mais na competição generalizada que a condiciona.

Apenas se transformarmos nossas condições de existência (o que pressupõe abolir a privação dessas condições, a propriedade privada, em escala mundial) de modo a superar as condições de existência da sociedade capitalista, os seres humanos podem se emancipar e transformar livremente a si mesmos, indo além da coação de ter que assumir papeis, funções e identidades pré-estabelecidas (etnia, raça, gênero, nação, emprego, família, cultura, classe etc), se associando conforme seus desejos para satisfazer livremente suas necessidades e capacidades.

humanaesfera, fevereiro de 2017

NOTAS:

[1] Trata-se do texto Contra a metafísica da escassez, copiosidade prática.

[2] Sobre tudo isso, ver os livros Os Filósofos Pré-socráticos, de Gerd Bornheim, Da Natureza das Coisas, de Lucrécio, e O nascimento da física no texto de Lucrécio, de Michel Serres. E sobre uma interessante análise do fragmento de Anaximandro citado, ver A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos, de F. Nietzche, segundo o qual teria sido Heráclito de Éfeso o primeiro a romper com essa visão endividada da existência.

[3] Cf. O nascimento da física no texto de Lucrécio, de Michel Serres.

[4] Esse exemplo é exposto no texto A noção de dispêndio de Georges Bataille. Ver também Post-scriptum: contra a ecologia. 5) Georgescu-Roegen e o decrescimento económico, de João Bernardo.

[5] Cf. Ética, de Baruch Espinosa e os dois volumes de Capitalismo e Esquizofrenia, de Deleuze e Guattari.

[6] Cf. os textos Propriedade privada, escassez e democracia,  assim como
Contra as recompensas e punições (contra a meritocracia, contra a coerção), também Abolição do trabalho e a questão do circuito produtivo global no comunismo, e, numa perspectiva prática, Contra a estratégia e Greve e produção livre.

[7] O texto Autonomia e cotidiano – Espinosa e o imperativo de Kant: ´Tratar os outros e a si mesmo como fins, jamais como meios.

[8] Sobre tudo isso, ver o texto Marx comunista individualista! (trechos sobre o indivíduo em Marx).

[9] Anteriormente, de uma forma descompromissada, provisória e muito rudimentar, tentamos desenvolver de um ponto de vista prático-cotidiano uma física que poderia ajudar a compreender a atuação, a atividade, o vir-a-ser, o surgimento. Nessa física, os conceitos de “inércia” e “força” são compreendidos imanentemente, na ideia de “engatilhamento de inércias qualitativamente heterogêneas” pelo qual os eventos, os surgimentos, os devires se dão. Em resumo, inércias desproporcionais (qualitativamente heterogêneas) interagem tangencialmente (engatilhamento) exibindo forças e, assim, eventos, novos seres, enquanto os conceitos de “energia”, “troca de energia”, “conservação de energia” e “trabalho” são secundários, por serem estimativas intelectuais sobre o já surgido, o já atuado. Quem tiver curiosidade, veja os textos Uma arkhé Acidental?Conceito qualitativo de energia, força e inércia e O engatilhamento das inércias está na raiz da força? 

[10] Cf. o livro O Reino e a Glória – Uma Genealogia Teológica da Economia e do Governo, de Giorgio Agamben.

[11] idem. Note que Carolus Linnaeus (Carlos Lineu, conhecido como o “pai da taxonomia moderna”) ainda usava palavra “economia” nesse sentido teológico cristão. O seu livro  Oeconomia naturae [economia da natureza], publicado em 1749,  defende que a natureza é a execução do comando de deus, sendo que as catástrofes, a competição e os sofrimentos entre os seres vivos realiza os desígnios da providência (a ideia de que “Deus escreve certo por linhas tortas”) ao compensar e equilibrar os nascimentos com as mortes, efetuando a ordem natural divino.

[12] Ver o  verbete “Economia” da Enciclopédia de 1772.

[13] Ver o livro O capitalismo como religião, de Walter Benjamin.

[14] Sobre isso, ver a primeira e a segunda partes do texto A História que os ecologistas não querem contar, de Marilene Nunes. Também o livro Natureza e nazismo, de João Bernardo e a série de textos Post-scriptum: contra a ecologia, o lugar comum dos nossos dias, também de João Bernardo.

[15] Ver os livros Ensaio sobre a dádiva, de Marcel Mauss, Os Argonautas do Pacífico Ocidental e Crime e Costume na Sociedade Selvagem, de Bronisław Malinowski, além de A Grande Transformação – as Origens da Nossa Época, de Karl Polanyi‎.

[16] Ver o livro A sociedade contra o Estado, de Pierre Clastres.

[17] Uma curiosidade sobre o “dom” pré-capitalista é a estória que originou a expressão “elefante branco”. No Sião, os elefantes brancos eram raríssimos, e os cuidados requeridos eram tão custosos que só um rei poderoso poderia arcar com eles. Por isso eles eram considerados os maiores sinais de riqueza e poder, que nesse tempo significavam opulência dispendiosa, dádiva, beneficiência. Um rei que quisesse derrubar um aliado menos poderoso, ao invés de declarar guerra a ele, presenteava-o com um elefante branco. Se o aliado, para cuidar do elefante, perdesse suas riquezas, ele se arruinaria e perderia o poder. Mas se ele, para não perder suas riquezas, não cuidasse do elefante branco, isso seria considerado uma grave “desfeita” diante do presente dado, e então o rei, alegando estar “com a razão ao seu lado”, poderia declarar guerra e destruir o antigo aliado. Outra ilustração da importância do “dom” nas sociedades pré-capitalista é o cavalo de Tróia.

A questão da "corrupção" e a vergonha do proletariado de seus próprios interesses humanos

Estamos vivendo uma época de profunda derrota do proletariado. Hoje, os explorados sentem vergonha de seus próprios interesses materiais e, para disfarçá-los, tentam afirmá-los defendendo o interesse do empresariado, do “empreendedorismo”, da “competitividade”,  que é apresentado a eles como o único “honesto” e “universal”, como uma espécie de “imperativo categórico kantiano”. Os interesses deles como simples seres humanos de carne e osso lhes causam vergonha porque são considerados por eles próprios como “corrupção”, enquanto os interesses mercantis, empresariais, financeiros parecem encarnar liberdade, igualdade, justiça, etc. Por exemplo, vergonha de afirmar claramente que querem uma vida fácil e com tudo de bom sem ter que se submeter aos  “vencedores do mercado”, vergonha do interesse de não trabalhar a vida toda e cada vez mais intensamente etc etc. Todos esse desejos, diz-se quase unanimemente, são “corrupção”, “jeitinho brasileiro”. Para eles, os interesses são sempre corruptos, e os únicos não-corruptos, os “desinteressados”, porque respeitam as “regras do jogo”, são os “vencedores no mercado”, os “empreendedores” etc.

O que é interessante é que a maior parte do tempo, essa competição declarada pela obediência é “da boca para fora”. A maioria está sempre lutando tacitamente para trabalhar o mínimo possível e por fazer ao máximo o que gostam de fazer, contra o mando dos chefes e proprietários. Mas como a confiança uns nos outros é esmagadoramente superada pela confiança em quem paga ou pode pagar os seus salários  (Estado ou empresa), eles evitam falar abertamente de seus interesses uns com os outros (que veem como competidores que ameaçam sua sobrevivência, seu emprego). Desse modo, não conseguem criar uma linguagem que expresse seus interesses humanos, porque tem medo de expressar-los uns aos outros. Eles tem vergonha de seus interesses, que é, como vimos, confundidos com “corrupção”. Por exemplo, a maioria se revolta com essas PECs (como a do aumento do tempo da aposentadoria, terceirização etc), porém, como não desenvolvem uma linguagem própria, assumem a linguagem da classe dominante para expressar essa revolta, que então se converte em “revolta na ordem” (aliás, clássica definição de fascismo pelo João Bernardo), uma revolta expressa na linguagem e na forma da classe dominante, a linguagem daqueles que não seriam “corruptos”, dos que tem a propriedade privada dos meios de vida e produção, e a quem, na prática cotidiana de guerra de todos contra todos pela sobrevivência, confiam materialmente que, se obedecerem, garantirá sua sobrevivência contra os concorrentes, ao contrário de seus iguais que querem “tomar seu trabalho”. Daí a revolta deles se expressa como apelo a uma “força maior” (por exemplo, Trump, Bolsonaro, ou pedidos para que haja chefes que punam e recompensem com mais força e rigor) que resolva todos os problemas através da repressão e matança, para defendê-os contra seus iguais, que são vistos como “inimigos” (tanto os ainda mais pobres quanto estrangeiros, migrantes etc).

Para que os proletários criem uma linguagem autônoma, pode ser útil retomar e aperfeiçoar a ética de Hipócrates, que apresenta uma interessante contraposição ao conceito de “corrupção” incessantemente usado pela classe dominante. Afinal, em seu sentido essencial, corrupção é fazer algo em troca de outro algo (em busca de recompensas e por medo de punições), ao invés de fazê-lo como algo que vale por si só, algo de cuja necessidade, humanidade e ética a atividade de produzi-lo se justifica por si só…

Assim, compartilhamos esse resumo da ética de Hipócrates que encontramos neste blog:

“Salvar vidas, a arte da medicina, está acima do poder, do dinheiro e das leis dos reinos em que se passa exercendo a medicina. O verdadeiro significado de corrupção não é quebrar as regras, mas exercer a arte como se não fosse válida por si só, exercendo-a, pelo contrário, por outra coisa alheia, como o dinheiro e as promessas e ameaças de quem tem poder e faz as leis. Se o médico não ama o que faz, ele vai se vender e causará dano, porque seu interesse será ganhar mais, buscando enganar e agradar quem lhe paga; em troca, torna-se escravo de quem tem dinheiro. O médico deve ser livre, autônomo, formando com outros uma comunidade que compartilha livremente as descobertas da medicina, sem se submeter a reinos, cidades ou povos, para servir a humanidade.” (Resumo da ética hipocrática baseado nos textos “Acerca da arte”, “Epístolas”, “Preceitos” e outros. Resumo feito a partir de várias fontes, principalmente as contidas no livro “Textos Hipocráticos: o doente, o médico e a doença”. Henrique F. Cairus, Wilson A. Ribeiro Jr.)
humanaesfera, janeiro de 2017

Veja também outros textos sobre ética:

 
 
 

O maquinismo atrativo – a teoria da atração apaixonada de Charles Fourier (trechos)

(English version: The attractive machinery. The theory of passionate attraction (excerpts))

Trechos de diversas obras [*] de Charles Fourier (1772–1837) que expõem suas ideias principais sobre a ordem combinada das séries apaixonadas, as 12 paixões, glutonaria, trabalho atrativo, a educação, a crítica do livre arbítrio e da civilização. Apesar de diversos equívocos quanto aos meios que propunha, tais como a manutenção do sistema salarial (e, portanto, das classes, da mercadoria e do Estado), e a ilusão sobre a possibilidade de uma economia alternativa paralela ao capitalismo, e também certa fantasia teleológica naturalista, as ideias fundamentais permanecem extremamente perspicazes e impressionantes. Tradução por humanaesfera a partir do inglês e do francês.

O CÍRCULO VICIOSO DA CIVILIZAÇÃO

c3b1f-fourierrusse1“[Na civilização,] cada pessoa engajada numa indústria está em guerra com as massas, e malevolente para com elas por interesse pessoal. Um médico deseja de seus semelhantes bons casos de febres, e um advogado, bons processos em cada família. Um arquiteto necessita de um bom incêndio que reduza um quarto da cidade às cinzas, e o vidreiro deseja uma boa tempestade de granizo que quebre todas as vidraças. Um alfaiate, um sapateiro quer que o público use somente coisas mal pintadas e sapatos feitos de couro fajuto, de modo a triplicar a quantidade consumida – para o benefício do comércio; é isso que os preocupa. Uma corte de justiça considera oportuno que a França continue a cometer 120.000 crimes e danos reclamáveis, número necessário para manter as cortes criminais. É assim que na indústria civilizada cada indivíduo está em guerra proposital com as massas; é o resultado necessário da indústria anti-associativa ou de um mundo invertido. […]

Esse círculo vicioso da indústria é tão claramente percebido que por toda parte o povo está começando a suspeitar dele e a sentir, estupefato, que, na civilização, a pobreza nasce da própria abundância. […]

Portanto, a indústria civilizada, eu repito, só pode criar os elementos da felicidade, mas não a própria felicidade. Pelo contrário, será mostrado que o excesso de indústria leva a civilização a grandes infortúnios, se os métodos do progresso real na escala social não forem descobertos.” (Q.M.)

A SERVIDÃO DO LIVRE ARBÍTRIO


“A servidão do Civilizado […] é tão facilmente constatada que seria supérfluo demonstrá-la; mas ela continua orgulhosa numa trincheira na qual ainda resiste, e, por causa da falta de liberdades políticas e materiais, ela se agarra a algumas liberdades espirituais, principalmente o Livre Arbítrio […].

Se existe uma questão à qual se deve aplicar o preceito de Bacon, “refazer o entendimento humano e esquecer tudo que foi aprendido”, é a do Livre Arbítrio. É preciso toda a insolência de nossos sofistas para pretender que o homem é livre para optar entre o bem e o mal quando o persuadem que, se ele opta pelo que chamam de mal, ele será torturado neste mundo pelos carrascos ou assassinos filosóficos; e no outro mundo pelos demônios ou assassinos teológicos. Até mesmo um animal, embora desprovido de razão, não ousaria optar pelo suposto mal numa situação desse tipo.

Posicione um cão esfomeado perto da comida e seu primeiro pensamento será cometer o mal, roubar e devorar o objeto cobiçado; mas faça-o ver o açoite suspenso sobre sua cabeça e o pobre animal se encolherá e parecerá vos dizer: se eu fosse livre, eu comeria a comida, mas como tu me espancarás, eu prefiro morrer de fome.

Assim é o Livre Arbítrio de que gozam o homem civilizado e o bárbaro: ele é livre para optar por mais ou por menos privações e suplícios, mas não é livre para o bem-estar considerando os fatores [éléments] ao seu redor. Se ele não estiver disposto a ser enforcado, ele pode optar pelo pequeno inconveniente de morrer de fome, segundo os princípios do aperfeiçoamento social que condena o pobre ao cadafalso quando ele ousa demandar trabalho, pão e um mínimo social.” (U.U., I)

“Temos que demonstrar que o Livre Arbítrio, no estado civilizado, é enganoso, passivo e subordinado aos impulsos da intriga e do preconceito, em suma, tão perigoso para as massas quanto para os indivíduos, porque ele em geral nada mais é do que uma sugestão mais ou menos enganosa, salvo exceções tão raras que confirmam a regra e reduzem o pretenso Livre Arbítrio dos Civilizados à privação real.” (U.U., I)

“[Na civilização, o livre arbítrio] não é senão o exercício da irracionalidade, do arbitrário em oposição à arbitragem. Precisamos pensar na extirpação da arbitrariedade e (na instauração) da arbitragem ou livre determinação, fundada teoricamente na evidência da justiça, e praticamente na utilidade da aplicação. Eis a faculdade de que o homem civilizado é privado por uma dupla causa, pela ignorância das regras da justiça ou leis da natureza e pela influência de duas ciências fraudulentas, a filosofia e a teologia, com suas insinuações arbitrárias no lugar da justiça e da natureza.” (U.U., I)

56beb-032b-2bfourier2b-2blivre2barbitrio“Passemos ao papel ativo ou exercício direto do Livre Arbítrio, que supõe independência frente aos preconceitos, e conhecimentos exatos da sorte [destinée]. Qual regra o homem provido dessas novas luzes deverá seguir? A regra de seguir as leis da natureza desenvolvendo as cinco paixões sensitivas e as quatro afetivas, segundo a ordem indicada pelas três paixões distributivas. É impossível haver felicidade coletiva ou individual sem esse método, nenhum ser pode ser feliz positivamente sem a expansão da sua natureza ou desenvolvimento de suas atrações. Só podemos nos satisfazer no conhecimento da natureza apaixonada quando tivermos descoberto um meio de desenvolver nessa ordem nossas doze paixões, e não podemos descobrir isso exceto esquecendo os dogmas de nossos 600.000 volumes filosóficos e teológicos, mais ou menos contrários à expansão das paixões.”(U.U., I)

DEVER E ATRAÇÃO

“Todos aqueles caprichos filosóficos chamados deveres não têm nenhuma relação com a Natureza; o dever procede dos homens, a Atração procede de Deus; agora, se desejamos conhecer os desígnios de Deus, devemos estudar a Atração, a Natureza simplesmente, sem qualquer consideração pelo dever, que varia em cada era, enquanto a natureza das paixões foi e permanecerá invariável em todas as nações dos homens.” (Q.M.)

“O mundo instruído é totalmente imbuído com uma doutrina chamada MORAL, que é inimiga mortal da atração passional.

A moral ensina o homem a ser inimigo de si mesmo, a resistir a suas paixões, reprimi-las, a acreditar que Deus foi incapaz de organizar sabiamente nossas almas, nossas paixões; que é necessário o ensino de Platão e Sêneca para saber como distribuir os caracteres e os instintos. Imbuídos com esses preconceitos sobre a imperícia de Deus, o mundo instruído foi incapaz de calcular os impulsos naturais ou atrações passionais, que a moral proscreve e reduz ao estado de vícios.

beea5-novo2bmundo2b-2bfourierÉ verdade que esses impulsos apenas nos arrastarão ao mal caso os tratemos isoladamente; mas devemos calcular seu jogo sobre uma massa de dez mil pessoas societariamente reunidas, e não sobre famílias ou indivíduos isolados: é isso que o mundo instruído não refletiu; reconheceremos neste estudo que, desde que se alcance um número de 1600 societários, os impulsos naturais chamados atrações tendem a formar séries de grupos contrastados, nos quais tudo leva à indústria tornada atrativa e à virtude tornada lucrativa.” (N.M.)

“As paixões, que se acredita serem inimigas da concórdia, na realidade conduzem àquela unidade da qual se supõe que elas são muito distantes. Mas fora do mecanismo chamado séries “exaltadas”, emulativas e engatadas, elas são tigres soltos, enigmas incompreensíveis. Foi isso que levou os filósofos a dizerem que nós devemos reprimi-las; uma opinião absurda, na medida em que só podemos reprimir nossas paixões pela violência ou pela substituição absorvente, substituição que não é repressão. Por outro lado, se fossem eficientemente reprimidas, a ordem civilizada rapidamente declinaria recaindo em um estado nômade, onde as paixões ainda seriam malevolentes como hoje. A virtude dos pastores é tão duvidosa quanto a de seus apologistas, e nossos fazedores de utopia, ao atribuir assim virtudes à povos imaginários, apenas são exitosos em provar a impossibilidade de introduzir a virtude na civilização.” (U.U., III)

AS PAIXÕES

“Uma objeção [à ideia de mecanismo societário] e que precisa ser refutada mais de uma vez, é aquela da discórdia social. Como conciliar as paixões, os interesses conflitantes, os caráteres incompatíveis, em suma, as inúmeras disparidades que engendram tanta discórdia?

Pode-se facilmente pensar que farei uso de uma alavanca totalmente desconhecida, e cujas propriedades não podem ser julgadas até que eu as tenha explicado. As séries passionais contrastantes se alimentam unicamente dessas disparidades que desconcertam a política civilizada; elas agem como o lavrador que de uma massa de sujeira retira os germes da abundância; o refugo, a matéria imunda e impura que serve apenas para sujar nossas habitações é para ele fonte de riquezas.” (U.U., II)

“Somos familiares com as cinco paixões sensuais tendentes à Luxúria, com as quatro paixões afetivas tendentes aos Grupos; apenas nos resta aprender sobre as três paixões distributivas cujo impulso combinado introduz a Série, um método social cujo segredo foi perdido desde a época da humanidade primitiva, que foi incapaz de manter as Séries por mais do que cerca de 300 anos.” (Q.M.)

“As quatro paixões afetivas tendentes a formar os quatro grupos – amizade, amor, ambição, paternidade ou consanguinidade – são bastante familiares; mas ainda não foi feita delas nenhuma análise, paralelo ou escala.

As três outras, chamadas distributivas, são totalmente mal-entendidas, e são apenas intituladas de vícios, embora sejam infinitamente preciosas; pois essas três possuem a propriedade de formar e dirigir as séries de grupos, a fonte da harmonia social. Dado que essas séries não se formam na ordem civilizada, as três paixões distributivas causam apenas desordem. Vamos defini-las.” (U.U., I)

“10ª – A CABALISTA é a paixão que, como o amor, tem a propriedade de confundir postos, puxar superiores e inferiores juntos uns dos outros. Todo mundo deve lembrar de ocasiões quando se é arrastado em algum Caminho com completo sucesso.

Por exemplo: a cabala eleitoral para eleger um certo candidato; cabala sobre agiotagem; cabala de dois pares de amantes, planejando um quarteto sem o conhecimento do pai; cabala familiar para assegurar uma conquista desejada. Se essas intrigas são coroadas de sucesso, os participantes se tornam amigos; apesar de algumas inquietações, eles passaram momentos felizes juntos enquanto conduziram a intriga; as agitações que ela excita são necessidades da alma.

3a301-022b-2bfourier2b2b-2bcirculo2bvicioso2bda2bcivilizacaoMuito distante da calma insípida cujas doçuras são exaltadas pela moral, o espírito cabalístico é o verdadeiro caminho do homem. Intrigar dobra seus recursos, amplia suas faculdades. Compare o tom de uma reunião social formal, seu jargão moral, forçado, lânguido, com o tom dessa mesma gente unida na cabala: eles aparecerão metamorfoseados; admiraremos sua expressão, sua animação, o jogo rápido de ideias, a presteza das ações, da decisão; em suma, a rapidez do movimento espiritual ou material. Esse magnífico desenvolvimento das faculdades humanas é fruto da décima paixão, a cabalista, que prevalece constantemente nos trabalhos e encontros das séries apaixonadas.

Como sempre resulta de certo modo em sucesso, e como seus grupos são todos preciosos uns para os outros, o encanto das cabalas se torna um poderoso laço de amizade entre todos os sectários, mesmo os mais desiguais.” (U.U. IV)

“A perfeição geral da indústria então surgirá da paixão mais condenada pelos filósofos; a cabalista ou dissidente, que nunca conseguiu obter entre nós o status de uma paixão, embora seja tão fortemente enraizada até nos próprios filósofos, que são os maiores intrigantes do mundo social.

A cabalista é a paixão favorita das mulheres; elas são excessivamente apreciadoras da intriga, das rivalidades e de todas as brigas maiores e menores de uma cabala. É uma prova de sua eminente aptidão para a nova ordem social, onde inúmeras cabalas serão necessárias em todas as séries, discórdias periódicas para manter um movimento de ir e vir entre os sectários dos diferentes grupos. […]

12ª – A COMPÓSITA. Essa paixão requer em cada ação uma sedução ou prazer composto dos sentidos e da alma, e consequentemente o entusiasmo cego que nasce somente da mistura de dois tipos de prazer. Essas condições são tudo menos compatíveis com o trabalho civilizado, que, longe de oferecer qualquer sedução para os sentidos ou a alma, é somente um duplo tormento mesmo nas mais louvadas oficinas, tal como as fábricas de fiação da Inglaterra onde o povo, mesmo a criança, trabalha quinze horas por dia, sob ameaça, em locais desprovidos de ar.

A compósita é a mais linda das doze paixões, a única que melhora o valor de todas as outras. Um amor não é lindo a menos que seja um amor composto, combinando o encanto dos sentidos e da alma. Ele se torna insignificante ou enganoso se se limita a uma dessas fontes. Uma ambição não é veemente exceto se pôr em jogo duas fontes: glória e interesse. Então, ela se torna capaz de esforços brilhantes.

A paixão compósita traz um respeito tão grande que todos concordam em desprezar alguém inclinado ao prazer simples. Imagine um homem que se guarnece de finas comidas, vinhos finos, com a intensão de desfrutá-los sozinho, de dar a si mesmo para se empanturrar, e ele se expõe a um bem merecido escárnio. Mas se esse homem reúne uma companhia seleta em sua casa, onde se pode desfrutar ao mesmo tempo o prazer dos sentidos com regozijo e o prazer da alma por companheirismo, ele será celebrado, porque esses banquetes serão um prazer composto e não simples.

Se a opinião geral despreza o prazer material simples, o mesmo vale para o prazer espiritual simples, de reuniões onde não há nem frescor, nem dança, nem amor, nem nada para os sentidos, onde se goza apenas na imaginação. Uma tal reunião, desprovida da compósita ou prazer dos sentidos e da alma, torna-se insípida para seus participantes, não muito antes que “o tédio cresça e ela se dissolva”.

2fa31-paixoes-2bfourier11ª A PAPILONNE (borboleta) ou Alternante. Embora décima primeira conforme a escala, ela deve ser examinada depois da 12ª, porque ela serve como um elo entre as outras duas, a 10ª e a 12ª. Se o propósito das séries fosse prolongar as sessões por doze ou quinze horas como aquelas dos trabalhadores civilizados, que, da manhã à noite, se estupefazem engajados em deveres insípidos sem qualquer diversão, Deus teria nos dado um gosto pela monotonia, uma aversão à variedade. Mas como as sessões das séries são bastante curtas, e o entusiasmo inspirado pela compósita é incapaz de ser prolongado além de um hora e meia, Deus, em conformidade a essa ordem industrial, tinha que nos brindar com a paixão da papillonnage, a inquietude pela variedade periódica nas fases da vida, e pela frequente variação de nossas ocupações. Ao invés de trabalhar doze horas com um intervalo escasso para uma pobre e embotada refeição, o estado societário nunca estende suas sessões de trabalho além de uma hora e meia ou duas no máximo; além disso, ele difundirá uma multidão de prazeres, encontros dos dois sexos terminando em banquetes, dos quais se procederá a novas diversões, com diferentes companhias e cabalas.

Sem esta hipótese do trabalho associativo, arranjado na ordem que eu descrevi, seria impossível conceber por que Deus deveria ter nos dado três paixões tão antagônicas à monotonia experimentada na civilização, tão irracional que, no estado existente, elas nem mesmo foram consideradas paixões, mas são chamadas apenas vícios.

Uma série, pelo contrário, não poderia ser organizada sem a permanente cooperação dessas três paixões. Elas são obrigadas a intervir constantemente e simultaneamente no jogo serial da intriga. Daí decorre que essas três paixões não podiam ser discernidas até que o mecanismo serial fosse inventado, e que até então elas fossem consideradas vícios. Quando a ordem social para a qual Deus nos destinou for conhecida em detalhe, veremos que esses pretensos vícios, a Cabalista, a Papillonne a Compósita tornam-se as três garantias da virtude e da riqueza; que Deus de fato soube como criar paixões tais como elas são demandadas pela unidade social; que Ele estaria errado em mudá-las para agradar Sêneca e Platão; que, pelo contrário, a razão humana deve buscar descobrir uma condição social que esteja em afinidade com essas paixões. Nenhuma teoria moral jamais as mudará e, conforme as regras da dualidade de tendência, elas intervirão sempre para levar AO MAL no estado desconjuntado ou limbo social, e AO BEM no regime de associação ou trabalho serial.” (U.U, III)

“As sete paixões “afetivas” e “distributivas” dependem mais do espírito do que da matéria; são classificadas como PRIMITIVAS. Sua ação combinada engendra uma paixão coletiva ou uma formada pela união das sete, como o branco é formado pela união das sete cores de um raio de luz; devo chamar essa 13ª paixão de Harmonismo ou Unitarismo; é ainda menos conhecida do que a 10ª, a 11ª e a 12ª, e dela ainda não falei.

O Unitarismo é a inclinação do indivíduo para reconciliar sua própria felicidade com a de tudo que o circunda e de todo o gênero humano, até hoje tão odioso. É uma filantropia irrestrita, uma boa vontade universal que só pode ser desenvolvida quando a humanidade inteira for rica, livre e justa.” (Q.M.)

EXEMPLO: A GLUTONARIA (SOBRE A GASTROSOFIA)

“Eu devo, para preparar outros para compartilhar minha confiança, explicar o objeto de um desses impulsos considerados viciosos.

Eu seleciono uma propensão que é a mais comum e a mais refreada pela educação: é a glutonaria das crianças, a sua predileção por guloseimas, e, diante do conselho dos pedagogos para que gostem de pão, a opor-se comendo mais pão do que o permitido.

caa3c-012b-2bfourier2bA natureza é muito desastrada por dotar as crianças com gostos tão opostos à sã doutrina! Toda criança considera um desjejum com pão seco uma punição; ela gosta de cremes açucarados, laticínios adocicados e doces, marmeladas e compotas, frutas cristalizadas e cruas, limonadas e laranjadas, vinho branco suave. Observe atentamente esses gostos que prevalecem em todas as crianças; sobre isso um grande caso deve ser julgado: a questão a ser determinada é quem está errado, Deus ou a moralidade? […]

Deus dotou as crianças com o gosto pelas substâncias que serão as menos custosas na ordem societária.  Quando o globo inteiro for habitado e cultivado, gozando a livre circulação [libre circulation], sem nenhuma barreira, as doces iguarias que mencionei antes serão muito menos custosas do que o pão; os víveres abundantes serão as frutas, laticínios e o açúcar, mas não o pão, cujo custo se elevará muito, porque os trabalhos de cultivo do trigo e preparação diária de pão são penosos e pouco atrativos; é preciso pagar bem mais que aqueles nos pomares ou confeitarias.” (N.M.)

c044a-falansterio“No estado civilizado, a gulodice não se alia à indústria, porque o produtor trabalhador não desfruta dos bens que foram cultivados ou fabricados. Essa paixão, portanto, se torna um atributo do ocioso; e é apenas por isso que ela é viciosa, sem falar dos desperdícios e excessos que ocasiona.

No estado societário, a gulodice tem um papel totalmente oposto: não é mais a recompensa da ociosidade, mas da indústria, pois até o mais pobre cultivador participa no consumo dos preciosos bens. Além disso, sua única influência será nos preservar do excesso, devido à variedade, e estimular o trabalho ao aliar as intrigas do consumo com aquelas da produção, preparação e distribuição. A produção, sendo a mais importante dessas quatro, coloca de início o princípio que deve nos guiar; é a generalização do epicurismo. Com efeito:

Se pudéssemos elevar toda a humanidade aos refinamentos da gastronomia, mesmo nos pratos mais comuns, tais como o repolho e rabanete, e dar a cada um uma afluência que lhe permita recusar toda comida de qualidade ou preparação medíocre, o resultado seria que cada país cultivado seria, depois de alguns anos, coberto com deliciosas produções; pois não haveria nenhum lugar para as medíocres, tais como os melões amargos e pêssegos amargos, que nascem em certos solos onde não mais se cultiva melões nem pêssegos: cada lugar se dedicaria às produções que seu solo pode elevar à perfeição; o solo pobre seria deixado aos esportes, ou talvez às florestas, campinas  artificiais ou outro emprego que pudesse dar um produto de boa qualidade. Não é que as Séries apaixonadas não consumam comidas e coisas comuns, mas elas desejam, mesmo nas coisas comuns, tais como feijões e pano grosso, a qualidade mais perfeita possível, em conformidade com as proporções que a natureza estabeleceu na atração industrial.

O princípio do qual é preciso partir é que se chegue a uma perfeição geral da indústria, pela exigência e refinamento universal dos consumidores sobre as comidas e as roupas, as mobílias e os prazeres.” (N.M.)

“Minha teoria se resume a utilizar as paixões hoje condenadas, tal como a Natureza nos deu e sem de nenhum modo mudá-las. Eis todo o mistério, todo o segredo do cálculo da Atração apaixonada. Não se argumenta aqui se Deus estava certo ou errado ao dar à humanidade estas ou aquelas paixões; a ordem societária se beneficia delas sem mudá-las.” (U.U., IV)

“Seu mecanismo produz em todos os aspectos a coincidência entre o interesse do indivíduo e o interesse coletivo, sempre divergentes na civilização.” (F.I)

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Aviso aos civilizados a respeito da próxima metamorfose social

TRABALHO ATRATIVO

“Porém, o trabalho é o deleite de várias criaturas, tais como os castores, abelhas, vespas e formigas, que tem completa liberdade para preferir a inércia: mas Deus lhes proveu com um mecanismo social que atrai à indústria, e faz a felicidade ser encontrada na indústria. Por que ele não nos concederia o mesmo favor como o desses animais? Que diferença entre a sua condição industrial e a nossa! Um russo, um argelino trabalham por medo do açoite e da paulada; um inglês, um francês, por medo da fome que espreita sua pobre família; os gregos e romanos, cuja liberdade foi louvada por nós, trabalhavam como escravos e por medo de punição, como os negros nas colônias atuais.” (U.U., II)“No mecanismo civilizado, encontramos por toda parte a infelicidade composta no lugar do encanto composto. Julguemos pelo caso do trabalho. Ele é, dizem as Escrituras muito justamente, uma punição do homem: Adão e sua prole são condenados a ganhar o pão com o suor de seu rosto. Isso já é uma aflição; mas esse trabalho, esse trabalho ingrato, do qual depende o ganho de nosso miserável pão, nós sequer podemos tê-lo! Falta ao trabalhador o trabalho do qual seu sustento depende – e ele suplica em vão por essa tribulação! Ele sofre ainda uma segunda vez, para obter trabalho numa era cujos frutos são de seu chefe e não dele, ou de ser empregado em obrigações nas quais ele é totalmente estranho… O trabalhador civilizado sofre ainda uma terceira aflição através das doenças com que ele é geralmente golpeado pelo excesso de trabalho demandado por seu chefe… ele sofre também uma quinta aflição, a de ser desprezado e tratado como indigente porque lhe faltam as coisas necessárias que ele precisa comprar pela angústia do trabalho repugnante. Ele sofre, finalmente, uma sexta aflição, a de que ele não vai obter nem progresso e nem salário suficiente, e que ao tormento do sofrimento presente se acrescenta a perspectiva do sofrimento futuro, e de ser enviado ao cadafalso se demandar esse trabalho que ele pode perder amanhã.” (Man.)

“No trabalho, como no prazer, a variedade é evidentemente o desejo da natureza. Qualquer gozo prolongado sem interrupção além de duas horas conduz à saciedade, ao abuso, embota nossas faculdades, e esgota o prazer. Uma refeição de quatro horas não vai passar sem excesso; uma ópera de quatro horas vai acabar enfastiando o espectador. A variedade periódica é uma necessidade do corpo e da alma, uma necessidade de toda natureza; até o solo requer alternância de sementes, e a semente, alternância de solo. O estômago vai logo recusar o melhor dos pratos se ele é oferecido todos os dias, e a alma será logo embotada no exercício de alguma virtude se ela não é socorrida por alguma outra virtude.” (U.U., I)

9eb75-fourier_degobert_1848“A principal fonte de serenidade entre os Harmonianos é a frequente mudança de encontros. A vida é um tormento perpétuo para nossos trabalhadores atuais, que são obrigados a gastar doze, frequentemente quinze horas em algum trabalho tedioso. Nem os ministros são isentos; encontramos alguns deles se queixando de ter passado um dia inteiro na tarefa maçante de pôr assinaturas em milhares de documentos oficiais. Tais responsabilidades fatigantes são desconhecidas na ordem societária; os Harmonianos, que devotam uma hora e meia ou no máximo duas às diferentes sessões, e que, nessas curtas sessões, são sustentados por impulsos cabalistas e pela união amigável com associados seletos, não falham em levar alegria e encontra-la por toda parte.” (N.M.)

EDUCAÇÃO

“Não há problema sobre o qual se tenha errado mais do que o da instrução pública e seus métodos. A Natureza, nesse ramo da política social, sofreu um prazer maligno em todas as épocas, ao confundirem as teorias e seus expoentes, desde o tempo da desgraça incorrida por Sêneca, o instrutor de Nero, até o dos fracassos de Condillac e Rousseau, dos quais o primeiro constituiu apenas um idiota político e o segundo sequer ousou se responsabilizar da educação de suas próprias crianças.” (U.U., IV)

“Será observado que, na Harmonia, a única função paterna é se render a seus impulsos naturais, estragar a criança, mimar todos os seus caprichos.

A criança mimada será suficiente reprovada e ridicularizada pelos seus pares. Quando uma criança passa o dia com meia dúzia de tais grupos e sofre suas piadas, ela fica completamente imbuída com um sentimento de sua insuficiência, e fica muito disposta a ouvir os conselhos dos patriarcas e veneráveis que são bons o bastante para lhes oferecer instrução.

Depois disso, terá pouca consequência que os pais se comprazam em mimar a criança na hora de dormir, dizendo que ela foi tratada muito severamente, que ela é realmente encantadora, muito inteligente; essas efusões apenas vão raspar a superfície, elas não irão convencer. A impressão foi feita. Ela está humilhada pelos zombarias dos  sete ou oito grupos de pequenos que ela visitou durante o dia. Será em vão que o pai e a mãe expliquem que as crianças que as repeliram são bárbaros, inimigos do intercurso social, da gentileza e bondade; todas essas platitudes dos pais não terão efeito, e a criança, ao retornar os seristérios infantis no dia seguinte, só vai lembrar das afrontas do dia anterior; na realidade é ela que vai curar o pai do hábito de mimar, redobrando seus esforços e provando que ela é consciente de sua inferioridade.” (U.U., IV)

“A Natureza concede a toda criança um grande número de instintos industriais, cerca de trinta, dos quais alguns são primários ou diretores e conduzem aos que são secundários.

A questão é descobrir antes de tudo os instintos primários: a criança morde a isca assim que se apresenta; desse modo, tão logo ela aprende a andar, deixando o seristério infantil, o cuidador ou cuidadora que se responsabiliza por ela rapidamente a conduz a todas as oficinas e comparece aos encontros industriais próximos dali; e como a criança vê por toda parte ferramentas diminutas, uma indústria em miniatura, na qual crianças de dois anos e meio até três já estão engajadas, e com quem ela está ávida por se associar, bisbilhotar, futucar, no fim de duas semanas podem ser discernidas quais oficinas a atraem, quais os seus instintos industriais.

Havendo uma variedade excessivamente grande de ocupações na falange, é impossível que a criança não encontre oportunidades de satisfazer vários de seus instintos dominantes; estes se exibirão à vista de pequenas ferramentas manipuladas por outras crianças alguns meses mais velhas do que ela.

Segundo os pais e professores civilizados, as crianças são pequenos preguiçosos; nada é mais errôneo; as crianças de dois e três anos são muito industriosas, mas nós devemos conhecer os móveis que a Natureza deseja pôr em ação para atraí-las à indústria nas séries apaixonadas e não na civilização. Os gostos predominantes em todas as crianças são:

  1. Bisbilhoticeou inclinação a futucar tudo, examinar tudo, olhar dentro de tudo, e mudar constantemente as acupações.
  2. Comoçãoindustrial, o gosto por ocupações barulhentas.
  3. Macaquiceou mania imitativa.
  4. Miniaturaindustrial, o gosto por oficinas em miniatura.
  5. Atração progressivado fraco para o forte.

Há muitas outras; limito-me a enumerar essas cinco primeiras, que são bastante familiares ao civilizado. Examinemos o método a ser seguido para aplicá-las à indústria desde cedo.

O homem ou a mulher que cuida dela inicialmente vai explorar a mania de bisbilhotar, tão dominante nas crianças de dois anos. Ela quer mexer em tudo, manusear e examinar tudo que vê. Hoje, ela é separada, colocada numa sala vazia, pois de outro modo ela destruiria tudo.

Essa propensão a manusear tudo é uma isca da indústria; para atraí-la, a criança será conduzida para as pequenas oficinas; ali, ela verá crianças de dois e meio a três anos usando pequenas ferramentas, pequenos martelos. Ela desejará exercitar sua mania imitativa chamada MACAQUICE; serão lhe dadas algumas ferramentas, mas ela vai querer ser admitida entre as crianças de vinte e seis e vinte sete meses que sabem como trabalhar, e que vão rejeitá-la.

Ela vai insistir se o trabalho coincidir com qualquer de seus instintos: o cuidador ou patriarca ensinará alguma parte do trabalho, e ela vai rapidamente ter sucesso se mostrando útil em algumas coisas frívolas que lhe servirão como introdução; examinemos esse efeito com relação a um tipo de trabalho sem importância, dentro do alcance das menores crianças – descascar e escolher ervilhas. Esse trabalho, que conosco ocupa as mãos de pessoas de trinta, será confiado a crianças de dois, três, quatro anos: o salão é guarnecido de mesas inclinadas contendo vários ocos; duas crianças estão sentadas no lado elevado; elas tiram as ervilhas da vagem, a inclinação da mesa faz os grãos rolarem para o lado mais baixo onde três crianças menores são posicionadas, de vinte e cinco, trinta e trinta e cinco meses, encarregadas da tarefa de escolher, e mobiliada com implementos especiais.

A tarefa é separar as menores ervilhas para o guisado adocicado, as medianas para o guisado de toucinho, e as maiores para a sopa. A criança de trinta e cinco meses primeiro seleciona as pequenas que são as mais difíceis de pegar; ela envia todas as grandes e medianas para o próximo oco, onde a criança de trinta meses empurram aquelas que parecem grandes para o terceiro oco, retorna as pequenas para o primeiro, e coloca os grãos medianos na cesta. A criança de trinta e cinco meses, posicionada no terceiro oco, tem uma tarefa fácil; ela retorna alguns grãos medianos para o segundo, e reúne as grandes em sua cesta.

É nessa terceira posição que a criança iniciante será colocada; ela vai se misturar orgulhosamente com os outros no lançamento dos grãos grandes na cesta; é um trabalho bem bobo, mas ela sentirá como se ela tivesse realizado tanto quanto seus companheiros; ela ficará entusiasmada e será tomada por um espírito de emulação, e na terceira sessão ela será capaz de substituir a criança de trinta e cinco meses, retornar os grãos do segundo tamanho no segundo compartimento, e reunir somente os maiores, que são facilmente distinguidos.” (N.M.)

“Se a educação civilizada desenvolvesse em cada criança suas inclinações naturais, veríamos quase todas as crianças ricas se enamorarem com várias ocupações muito plebeias, tais como aquela do pedreiro, do carpinteiro, do ferreiro, do seleiro. Exemplifiquei Luiz XVI, que amava o negócio do serralheiro; uma infanta da Espanha preferia aquele do sapateiro; um certo rei da Dinamarca se satisfazia fabricando seringas; a anterior rei de Nápoles amava vender ele mesmo o peixe que ele tinha pescado na feira; o príncipe de Parma, que Condillac tinha treinado em sutilizas metafísicas, no entendimento da intuição, da cognição, só tinha gosto pela ocupação dos representantes de igreja e a dos irmãos leigos.

A grande maioria das crianças ricas seguiria esses gostos plebeus, se a educação civilizada não se opusesse ao desenvolvimento deles; e se a sujeira das oficinas e a grosseria dos trabalhadores não levantasse uma repugnância mais forte do que a atração. Que filho de príncipe existe que não gosta de uma das quatro ocupações que mencionei, aquela do pedreiro, do carpinteiro, ferreiro e do seleiro, e quem não avançaria nelas se ela contemplasse desde tenra idade o trabalho feito em bonitas oficinas, por gente refinada, que sempre arranjaria oficinas em miniatura para as crianças, com poucas complicações e trabalho leve?” (U.U., III)

Nenhuma tentativa será feita, como no caso da educação atual, de criar pequenos sábios precoces, escolas primárias intelectuais iniciantes, introduzindo desde os seis anos em sutilezas científicas; o propósito será de preferência assegurar a precocidade mecânica; capacidade na indústria corporal, que, longe de retardar o crescimento da mente, o acelera.

Se quisermos observar a inclinação geral das crianças de quatro anos e meio a nove anos de idade, veremos que elas são fortemente atraídas para todos os exercícios materiais, e muito pouco aos estudos; é certo então que, de acordo com o desejo da natureza ou atração, o cultivo material deve predominar nessa idade.

Por que esse impulso da infância para os exercícios materiais? Porque a Natureza quer, sobretudo, fazer do homem um lavrador e um fabricante, para levá-lo à riqueza antes de conduzi-lo à ciência.” (U.U., IV)

[Trechos traduzidos por humanaesfera a partir do inglês e francês]

Nota:

[*] Siglas usadas para obras de Charles Fourier:

Q.M. – Théorie des quatre mouvements et des destinées générales (1808).

U.U. – Théorie de l’unité universelle (1822-1823).

N.M. – Le Nouveau monde industriel et sociétaire ou invention du procédé d’industrie attrayante et naturelle, distribuée en séries passionnées (1829).

F.I. – La fausse industrie morcelée répugnante et mensongère et l’antidote, l’industrie naturelle, combinée, attrayante, véridique donnant quadruple produit (1835).

Man. – Manuscrits de Fourier (1845-1858)

(obs.: todas essas obras podem ser encontradas online em http://gallica.bnf.fr , da Biblioteca Nacional da França)

PARA IMPRIMIR: BROCHURA HUMANAESFERA #5

Humanaesfera #5 é a quinta brochura (livreto) com conteúdos deste site. Este número contém extratos das obras de Charles Fourier e também extratos da primeira publicação comunista libertária, o jornal L’Humanitaire.

Neste link, está o PDF com a brochura, que consiste de 6 folhas A4 para serem impressas frente-e-verso (em impressoras que imprimem em frente-e-verso automaticamente, selecione “borda curta” ou “no sentido da borda menor”, ou ainda “Frente e verso, orientação vertical”), dobradas e grampeadas no meio.

Para ler como e-book, baixe a versão EPUB ou esta versão PDF.

Outros clássicos que traduzimos:

L´Humanitaire (1841), a primeira publicação comunista libertária

A Humanisfera (trechos) – Utopia Anárquica (1857) – Joseph Déjacque

Sobre a troca (1858) – Joseph Déjacque

Anarquia e Comunismo (1880) – Carlo Cafiero

Comentários sobre James Mill (trechos) (1844) – Karl Marx

Rascunho de artigo sobre um livro de Friedrich List(trechos) (1845) – Karl Marx

Marx comunista individualista! (trechos sobre o indivíduo em Marx) – Karl Marx

Contra o familismo novo e velho – abaixo a família!

(English translation)

Quem é privado dos meios de satisfazer suas necessidades se depara com a propriedade privada. Ele é coagido, se não quiser morrer (social e fisicamente), a se submeter aos caprichos, arbitrariedades e volubilidades de quem tem o poder de prover suas necessidades: no caso do filhos, os pais. 

Não por coincidência, a palavra “família” deriva do latim famulus, “escravo, servo”. Nela, por sua vez, está o radical latino fames, que significa “fome”, segundo a etimologia popular romana [nota 1]. Para os antigos romanos, a familia se constitui primariamente pelo poder de punir (com a fome) e recompensar (com matar a fome) os escravos/servos (que incluía a mulher, os filhos e os famuli adquiridos). 

Hoje, muitos criticam a família patriarcal defendendo a família moderna, pós-moderna, libertária, matriarcal, queer, poligínica, poliândrica, tribal, zoogâmica, comunitária, digital, neo-hippie etc. Desejam adicionar à família um pluralismo de novos adjetivos, perpetuando a servidão a que são submetidas as novas gerações há milênios [nota 2].

O FAMILISMO

Desde o surgimento do capitalismo (ou seja, do capital industrial, do proletariado e do Estado moderno, simultaneamente, século XVIII), o familismo é o fetiche central pelo qual os proletários, aqueles privados de propriedade de qualquer meio de vida, aceitam de bom grado se engajar em manter e aprimorar a empresa e o governo, criando e acumulando com dedicação o próprio poder hostil que os submete, desgasta, recicla, descarta e abandona sistematicamente. Isso porque colocam sua libido (catexia), seus desejos, na família, pseudo-propriedade privada na qual eles fantasiam estarem acumulando seu próprio capital em igualdade com os capitalistas; o que os leva a apoiar a classe dominante e a polícia, ou seja, o Estado, como garantidores dessa sua propriedade fictícia.

Graças ao familismo, que é essa crendice na pseudo-propriedade privada sobre um conjunto que engloba os filhos, parceiros sexuais, escovas de dentes, automóvel, casa etc, os proletários se imaginam tão capitalistas quanto os proprietários dos meios de vida e de produção que o exploram, e imaginam ter os mesmos interesses que eles.

Decorre do familismo a crendice de que há apenas “classe média” e “bandidos”: uma hierarquia infinitamente escalonada, que vai de famílias com “sucesso” – “classe média alta alta” – às famílias “fracassadas” – “classe média baixa baixa” -, hierarquia que supõem ser estabelecida “objetivamente, naturalmente, legitimamente” na competição cruenta, mas justa porque “meritocrática”, pela sobrevivência, pelo que é para poucos (escassez – propriedade privada imaginada como fenômeno natural, eterno). Mas toda “classe média” se congrega e torce pela polícia (à qual atribuem um status teocrático, sobre-humano, completamente livre para matar e torturar) contra os  “bandidos” . Estes são quaisquer bodes expiatórios que as facções da classe proprietária (agrupadas como identidades, pátrias, etnias, “gente de bem”, ou vestidas com outras fantasias, como as simétricas metades esquerda e direita do capital e do Estado) exibam nos meios de comunicação social como causa de todo mal: de “favelados” à “judeus”, passando por “vagabundos”, “estrangeiros”, “forasteiros”, “maconheiros”, “imperialistas”, “comunistas”, “golpistas”, “baderneiros” etc. É assim que, em caso de guerra, cada facção burguesa concorrente recruta facilmente proletários para agredirem e massacrarem a si mesmos, a seus próprios irmãos de classe atrás das fronteiras inventadas pelos próprios exploradores, supondo estarem atacando aqueles estereótipos, espantalhos ideológicos, bodes expiatórios. 

Se em seu acme o familismo é a sagração do açougue bélico, em sua base ele é a da guerra de todos contra todos chamada mercado e do poder armado que garante essa guerra, o Estado.  Eles imaginam que essas entidades são naturais, eternas, sagradas e imutáveis porque todas elas seriam os fundamentos consolidadores da família, que consideram a única coisa que dá sentido à suas vidas, a única razão para não se suicidarem. Os capitalistas necessitam que os indivíduos reprimam e limitem seus desejos ao familismo, para que eles se engajem com todo empenho em manter e aprimorar o Estado e o capital como meios de realizarem esse desejo estreito, limitado, formatado, mesquinho e em última instância suicida e homicida [nota 3].

Assim, enquanto para o capital (acumulação do trabalho morto, valorização do valor, sujeito automático, auto-expansão do lucro auto-referente sem fim) o que importa é que haja átomos vendedores/compradores, existentes socialmente apenas pela troca de mercadorias, simples engrenagens interligadas apenas pela acumulação do capital (daí que o capital facilmente adote uma atomizante emancipação feminina, homossexual, operária, racial, étnica, sexual etc), para a classe capitalista – que é a personificação do capital enquanto poder direto, prático, sobre os seres humanos, vampirizando-os em carne e osso para implementar a acumulação do capital, classe que inclui os burocratas e os proprietários, governo e empresa – para a classe capitalista há a clareza cristalina de que, sem a crendice na pseudo-propriedade chamada família, dificilmente alguém se disporia a se sacrificar até o esgotamento por aumentar um poder que só vai desgastá-lo até o osso para descartá-lo ao fim no olho da rua [nota 4]. Analisemos então como os capitalistas fazem o familismo ser inculcado nas crianças pelos próprios pais de geração em geração.

“SOCIEDADE DISCIPLINAR” E “SOCIEDADE DE CONTROLE”

Aparentemente, o poder dos pais sobre os filhos hoje (desde a década de 1970-80) é principalmente “objetivista”. Os pais simplesmente lembram aos filhos interminavelmente da existência do denominado “mundo real”: mundo-cão/ruas-cheias-de-assassinos-estupradores-monstros/guerra-de-todos-contra-todos/mercado-selecionador-imparcial-critério-último-da-verdade. “Mundo real” sempre  confirmado pelos meios de comunicação, por boatos chocantes ou pela degradação real dos arredores. O medo então acarreta o trancafiamento e submissão “voluntários” dos filhos na “segurança doméstica” e na escola. Ora, esse é exatamente o velho modo de sujeição dos proletários aos proprietários. O proletário se sujeita ao poder do proprietário não porque o proprietário se imponha “pessoalmente”, mas “objetivisticamente”. Jogado num mundo-cão desolado e desumano, sem propriedade de nada, privado de meios de vida, não resta ao proletário saída senão se vender “voluntariamente” no mercado de trabalho. Mas essa situação aparentemente “objetiva” e “natural”, na realidade é armada e garantida pelo Estado (e seu subterrâneo inseparável: o crime), órgão armado da classe proprietária responsável pelo “enforcement” da propriedade privada.

Então, a atual “sociedade de controle” (que sucede a “sociedade disciplinar” a partir da década de 1970-80), com seu “objetivismo”, pode ser vista como extensão da proletarização da esfera da produção para a esfera da reprodução da sociedade (família, educação, saúde, repressão sexual) [nota 5]. Diferentemente, a antiga família da “sociedade disciplinar” pode ser considerada uma sobrevivência da família feudal ou de castas, com um tipo de sujeição ainda não plenamente capitalista (em outros termos, havia subsunção formal mas ainda não subsunção real da reprodução do proletariado ao capital). Porque nela, os pais exerciam um poder principalmente pessoal, não “objetivista”. Os filhos ficavam a maior parte do tempo soltos pela rua (“mundo de curiosidades e maravilhas”) brincando com seus amigos (enquanto as filhas eram tratadas como “bonequinhas” ultraprotegidas, ajudando a mãe no trabalho doméstico, para serem futuras donas de casa, e não “mulheres do mundo”). A predominância do poder pessoal é evidente porque, no fim do dia, quando o pai chegava do trabalho, os pais recriminavam exigindo “respeito a ele” e até agrediam brutalmente os filhos para que “tomassem jeito”. Era o momento da disciplina.

FAMILISMO GENERALIZADO: A DOMESTICAÇÃO DA VIDA COTIDIANA UNIVERSAL PELA INTERNET

A proletarização da reprodução que caracteriza a atual “sociedade de controle” seria incontivelmente explosiva se não fosse acompanhada por uma familização generalizada. E é a internet que leva a uma absolutização do familismo antes inimaginável. No advento da internet, a chamada “web 1.0” resultou numa confluência vulcânica de dimensões díspares da existência: vida cotidiana e tecnologia da informação se chocaram sem controle, provocando um universalismo ou comunismo de ideias livremente produzidas por qualquer um e acessíveis a todos no mundo. A cada um se abria um universo infinitamente além do familismo, da familiaridade das “panelinhas” de amigos e da reificação identitária. Disparidade vulcânica potencialmente revolucionária, porque tornava a perspectiva de uma livre associação mundial dos indivíduos através de suas necessidades, desejos, projetos e paixões mais apaixonante do que o miserável e amedrontrado auto-encarceramento familiar. As pessoas se definiam, se encontravam e se relacionavam pelo que desejavam ser e fazer: o pseudônimo e o anonimato eram a regra.  Porém, com o aparecimento da chamada “web 2.0”, o capital cuidou de destruir essa disparidade vulcânica, obrigando todos a se identificarem, se encontrarem e se relacionarem como “pessoas com famílias, amigos e registradas pelo Estado”, minando na raiz a perspectiva de uma internet universalista de indivíduos livremente associados em função do suas necessidades e paixões livres e comuns [nota 6].

A “web 2.0” é o esvaziamento da internet (websites, fóruns, emails etc) pelas chamadas “redes sociais” (hoje dominadas pelo facebook, whatsapp etc), que levam a uma privatização ou mesmo uma feudalização do que se compartilha e se acessa na internet. O familismo (e o panelismo ou “amiguismo” inerente a ele) passa a ocupar todo o tempo e libido das pessoas: não é mais possível à quase ninguém existir socialmente se não aceitar se deixar chafurdar numa “timeline” frenética e interminável de exibicionismos pessoais e familiares infinitamente descartáveis a cada segundo. Quase toda internet universalista e livremente acessível (por buscadores) e feita autonomamente (homepages, grupos de discussão…) foi abandonada e esvaziada. Nessas condições, dá-se uma redução brutal da capacidade dos indivíduos de se expressarem, se associarem e pensarem fora da burrice da dimensão pessoal, familiar, amiguista e identitária. Ocorre uma infantilização geral.

Há ainda um aspecto ainda mais estarrecedor do familismo das “redes sociais”. Como todos praticamente só são acessíveis e só se comunicam por elas (facebook, whatsapp…), cada proletário ficaria isolado e incomunicável se não se tornasse também usuário delas. Isso dá um poder de vigilância absurdo sobre o que pensa, faz e sente cada um. O facebook é o maior e mais poderoso sistema de vigilância e monitoramento que já existiu na história da humanidade. E não só pelo Estado e serviços secretos. Quem é forçado, para sobreviver, a se vender como objeto de consumo vivo no mercado de trabalho, tem, por isso mesmo, sua sobrevivência sob o poder e arbítrio de outras pessoas (a classe capitalista, tanto burocratas quanto proprietários), que, é claro, vigiam e monitoram o facebook de seu escravo. Qualquer ideia levemente questionadora que encontrar, no dia seguinte, por um pretexto qualquer, o proletário está demitido, no olho da rua. Então, o familismo se torna o único pensamento e sentimento que é permitido ao proletariado expressar em público, a não ser que queira se suicidar socialmente (se tornando mendigo) ou fisicamente.

SAÍDA : ABOLIÇÃO DA FAMÍLIA

Nos perguntam: “Que nova família substituirá a família tradicional?” Nenhuma.  A família enquanto tal terá de ser superada: as novas gerações encontrarão livremente (gratuitamente) em comum na sociedade os meios de desenvolverem por si mesmas suas diversas potencialidades, aptidões e paixões, crescendo como seres autônomos. Ou seja, encontrarão livremente os meios de não serem obrigadas à se sujeitar à arbitrariedade nem capricho de ninguém. Então, pais e filhos enfim poderão ter verdadeiro amor uns pelos outros, porque não será mais fingido pelo interesse dos filhos em receber dos pais os meios de se satisfazerem. É claro que tudo isso só poderá ocorrer com a auto-abolição mundial do proletariado e, portanto, do capital e do Estado, mediante a livre associação global dos indivíduos que acessam livremente, gratuitamente e universalmente as condições práticas materiais (meios de produção mundialmente interconectados) necessárias para a auto-realização e livre desenvolvimento de seus desejos, necessidades, paixões, aptidões, projetos… Somente assim os apaixonados em ajudar a tornar autônomas as novas gerações (os que hoje são os escravos assalariados chamados educadores, professores,  babás etc), poderão se associar livremente por todo o mundo para exercer e aprimorar suas capacidades que tanto amam, fornecendo gratuitamente às novas gerações o fundamento para que cresçam e desenvolvam sua autonomia. A lição básica: que jamais aceitem o servilismo de fazer seja o que for em troca de dinheiro, cargos ou qualquer outro tipo de chantagem ou ameaça. [nota 7]

humanaesfera, novembro de 2015

NOTAS

[nota 1] http://etimologias.dechile.net/?familia e http://www.etymonline.com/index.php?term=family

[nota 2]  Já era assim nas comunidades tribais, onde a família geralmente se identificava com a própria tribo, podendo todos os tios e tias terem status de mães e pais (ou dependendo do sistema de parentesco, patrilinear ou matrilinear, apenas os parentes do pai ou da mãe). Para cada tribo, todos os outros humanos não-familiares eram  bestas, não-humanos ou falsos humanos, contra os quais se estava em estado de guerra constante ou latente (quando então, através da “dádiva”, criava-se um laço de dívida mútua, por exemplo, o potlatch). Para marcar o pertencimento à suposta única tribo dos “verdadeiros humanos”, que seriam os mais fortes e superiores, a família tribal submetia as novas gerações a ritos de passagem como provação do “merecimento” de pertencer à sua família em exclusão de toda humanidade. Esses ritos escreviam literalmente na carne e na alma as marcas de pertencimento (mutilações, humilhações, várias provas de resistência à dor, prova de que não se é “frouxo” assassinando inimigos sem hesitação, adquirindo cicatrizes de guerra etc). Evidentemente, as novas gerações eram forçadas a se submeter porque não havia nenhum outro meio de satisfazerem suas necessidades fora da tribo, exceto se desejassem a solidão da natureza inclemente, vulneráveis às tribos e feras inimigas. E se se juntassem para criar uma outra tribo independente, eles seriam obrigados a recriar as mesmas provações dos ritos de passagem e as mesmas violências para com as outras tribos.  Porque isso não depende só da vontade, mas das condições de existência materiais, ou seja, da capacidade humana de, com as forças produtivas existentes, transformar a natureza, a circunstâncias, as condições concretas das relações humanas. É o estado de natureza com que se deparavam que materialmente os obrigava a adotar todas essas coerções, se agrupando na forma social família-tribo.

[nota 3] Ver o livro O Anti-Édipo (volume I de Capitalismo e esquizofrenia), Gilles Deleuze e Felix Guattari.

[nota 4] Em O Capital, Marx explica que na esfera da circulação de mercadorias, essa aparência de igualdade e trocas voluntárias é real, não uma simples mentira. E como a esfera da produção é invisível, privada, isolada e sem comunicação com a sociedade, não é à toa que a aparência do capitalismo seja mesmo essa de trocas voluntárias e que a maioria dos proletários se considere “classe média” e até mesmo “capitalista”. O livro O Capital começa analisando a aparência imediata do modo de produção capitalista, a produção simples de mercadorias (em que cada um, sozinho, produz, vende e compra mercadorias, buscando satisfazer suas necessidades), mostrando que a ilusão  é baseada nessa aparência. Marx explica que só do ponto de vista do proletariado, quando ele se impõe como classe autônoma contra o trabalho que lhe é imposto, contra a empresa e as fronteiras nacionais, pode-se ter uma perspectiva teórico-prática que torna publicamente visível a esfera da produção – exploração, trabalho alienado, reificação, fetichismo do capital etc – como fundamento da sociedade capitalista.

[nota 5] Essa perspectiva parece permitir uma compreensão da “sociedade de controle” de modo muito menos holístico e misterioso do que se costuma fazer (que parece levar muitos a crer equivocadamente que a sociedade atual é “permissiva” – como defendem por exemplo os estrelistas espetaculares Zizek, Safatle – ou que a auto-sujeição é verdadeiramente auto-sujeição – por exemplo. a visão auto-culpista “tirano dentro de si”), possibilitando compreender o que é determinante e o que é acidental. Ou seja, parece abrir uma perspetiva prática libertária mais potente. Aos que ainda não sabem de onde veio essas expressões “sociedade de controle” e “sociedade disciplicar”, ver as obras de Deleuze e Guattari e Foucault.  A repressão da sexualidade, o sentimento de culpa etc, tudo isso continua sob a forma brutal objetivista segundo a qual, como todos seriam essencialmente monstros estrupradores, assassinos e vagabundos, “bandidos”, é preciso se reprimir e reprimir os outros, sofrer e fazer sofrer, para “subir na vida” e se juntar aos poucos “vencedores”. Quanto maior a capacidade de sacrificar a si e aos outros, maior seria provado e legitimado o mérito, a subida de posição na pirâmide da meritocracia.

[nota 6] Ver Infoenclosure 2.0 (Dmytri Kleiner & Brian Wyrick) e Fetishism of Digital Commodities and Hidden Exploitation (Wu Ming).

[nota 7] A abolição da família não é nenhuma ideia nova, mas parte do comunismo invariável do proletariado autônomo, isto é, anti-estatal e internacionalista, desde o século XVIII e XIX. Joseph Déjacque, Karl Marx, Wiliam Morris, Piotr Kropotkin e Alexander Bogdanov, entre muitos outros, contribuíram com suas obras para sistematizar e aprimorar essas ideias. 

Autonomia e cotidiano – Espinosa e o imperativo de Kant: "Tratar os outros e a si mesmo como fins, jamais como meios"

(English translation: Autonomy and daily life – Spinoza and Kant’s imperative: “Treat others and yourself as ends, never as means” – humanaesfera)

Immanuel Kant (1724-1804) dizia [nota 1] que a ética deveria emanar, para cada indivíduo ser autônomo, de uma esfera ideal incondicional, absoluta, que seria independente e superior ao mundo relativo e mutável que é o da existência cotidiana, social e histórica de cada um. Ele chamou essa esfera ideal absoluta de “razão legisladora”. Legisladora porque dita “imperativos categóricos”, que são fins e deveres incondicionais. O conjunto dos imperativos formaria o que ele chama “reino dos fins”, uma espécie de império supra-mundano ideal dentro da cabeça de cada um e de todos. Liberdade, para ele, é apenas se submeter e cumprir os ditames emanados dessa esfera absoluta supra-sensível, que seria o único bastião livre de paixões.

Porém, como a liberdade kantiana poderia não contradizer o mais impressionante dos seus imperativos categóricos que diz “aja de tal modo a tratar a humanidade, tanto em ti mesmo quanto em qualquer outra pessoa, nunca meramente como um meio para um fim, mas sempre simultaneamente como fim”? Pode-se discutir que “humanidade” parece sugerir um ente abstrato separado de ti mesmo e das outras pessoas, redundando em autonomia nenhuma; porém essa discussão não é a que propomos. Pode-se interpretar mais frutiferamente a frase simplesmente como “tratar a si e ao outro como fins e jamais como meios”. Por outro lado, questionável é o próprio pressuposto que fundamenta a ética kantiana, porque, se a razão legisladora é incondicional, absoluta, imperativa, todos e cada um de nós não passam de relativos, meios, instrumentos, objetos, servos, dessa esfera absoluta, que é o reino dos fins em si supra-mundano.

E na complexidade da existência prática cotidiana, social e histórica, a liberdade kantiana, com seus imperativos, pouco tem a oferecer que não admoestações moralistas, formais e ranzinzas. Isso no melhor dos casos, porque no pior, visto que praticamente ninguém leva à sério as reprimendas, surge a tentação de pôr essas “leis da razão” em prática não pelas leis da razão em si (que se revela impotente), mas por outra instância que, fora da lei e da razão, seria supostamente a única capaz de aplicá-las efetivamente – a polícia.

Existe alguma maneira de salvar o princípio de “tratar a si e ao outro como fins e jamais como meios” sem recair na contradição de fazer disso um “imperativo”, que, enquanto imperativo, por definição trata os outros e quem o assume como meios para aplicá-lo? Acreditamos que sim, e que a proposta de liberdade de Baruch Espinosa (1632-1677) [nota 2] é a que permite superar essas dificuldades, iluminando perspectivas mais ricas e frutíferas dos problemas da existência prática.

Espinosa já criticava em Descartes justamente a ideia de uma razão (ou liberdade) transcendente, que seria feita de uma substância (in)diferente e superior à substância de todos nós e de nossa existência. Mas, ao criticar Descartes, Espinosa não abandonou a razão universal nem a liberdade. Muito pelo contrário, ele as radicalizou. Comecemos explicando que, para ele, a liberdade (ou razão) não é nem pode ser um decreto.

Segundo ele, cada indivíduo (humano ou não) surge e se desenvolve por uma confluência casual de infinitas determinações simultâneas que atuam a todo instante e que ele chama de “afecções”. E, enquanto essa confluência de afecções sustenta sua existência, o indivíduo continua existindo. Essa é a dimensão passiva (do latim, “passio”, paixão) da existência. Porém, quando passa a existir, cada indivíduo é uma determinação nova (“conatus”), uma capacidade específica, um desejo, uma potência ativa que cria novas confluências, outras relações e outras capacidades e desejos que, é claro, não existiam antes.

Mas mesmo quando passa a existir, cada indivíduo humano continua sendo “afetado” continuamente por novas “afecções” e as experimenta como o que Espinosa chama de “afetos”. Os afetos que aumentam as suas capacidades denominam-se “alegria”. Os que as reduzem, “tristeza”.  Mas qual a relação disso com a liberdade?

O aspecto ativo do “afeto de tristeza” é o “ódio”, o desejo pela destruição daquilo que o indivíduo imagina causar a redução de suas capacidades (redução de sua existência), seja imaginando essa causa por engano ou não. Assim, a tristeza leva meramente à reação contra o que imaginamos causá-la. Apesar do que pode parecer, a reação é uma servidão diante daquilo contra que reagimos, e por isso não é uma ação livre, não é autodeterminada. O ódio se manifesta geralmente como uma agressão igual ou maior à imaginada violência original, e quando um indivíduo imagina outro indivíduo humano como causa e reage, isso costuma torná-los escravos de um círculo vicioso de represálias recíprocas e crescentes, uma espiral de reações em cadeia que ocupam uma parte cada vez maior de suas lamentáveis existências. Aliás, nada mais adequado do que a palavra “reacionário” para designar esses infelizes.

Contrariamente, o “afeto de alegria” tem como aspecto ativo o “amor”, o desejo por aumentar a capacidade daquilo (ou de quem) que o indivíduo imagina aumentar suas próprias capacidades, sua própria existência. Mas quando sua imaginação se engana, e atribui como causador de sua alegria algo que não o é, o amor é ainda reação, paixão, joguete das circunstâncias,  já que se transformará em tristeza, daí em ódio, como resultado necessário do engano. Só quando atribui com conhecimento adequado, o amor deixa de ser paixão para se tornar ação, razão, transformação consciente do mundo e de suas relações com os outros. O amor, o desejo nascido da alegria, então, se manifesta como ação livre, autodeterminada, porque o indivíduo age aumentando sua própria liberdade, e isso só ocorre efetivamente aumentando a liberdade do outro e do mundo em que vive. Amar, por definição, é tratar a si e ao outro como fins em si, como seres livres, não como meios, objetos, coisas, instrumentos.

No entanto, na complexidade da existência prática cotidiana, em que predominam afecções aleatórias e cegas (paixões), os afetos de tristeza e alegria, e os correspondentes desejos de ódio e amor, se misturam e se combinam, dando surgimento a uma infinidade de afetos e desejos intermediários (Espinosa analisa detalhandamente um vasto apanhado deles: esperança, medo, contentamento, glória, irrisão, inveja, consideração, remorso, compaixão, orgulho, gratidão, crueldade, bajulação, desprezo, audácia, despeito, modéstia, vergonha, generosidade…) pelos quais os indivíduos humanos, fora alguns poucos sortudos, se engajam num emaranhado de reações em cadeia que só reduz ainda mais as suas próprias capacidades e aumenta sua servidão [nota 3].

Gostemos ou não, é nesse emaranhado que se passa nossa existência cotidiana, social e histórica, em que existimos mais como objetos, que reagem tão previsivelmente às afecções quanto robôs, do que como seres autônomos que transformam sua existência. As admoestações, as reprimendas, as raivinhas, as culpabilizações, as ladainhas não só são hipócritas (porque ninguém está fora dessa confusão), mas colocam ainda mais lenha na fogueira, já que só sabem pedir e apoiar uma servidão ainda maior (por exemplo, sonhando com uma grotesca violência invencível e incontrolável que acabe com a própria violência: um capataz, um diretor, um rei, um inquisidor, um super-herói, um deus, o karma, o inferno, o fim do mundo, uma invasão alienígena…).

Onde está então a liberdade e a razão nesse emaranhado escabroso? É claro: liberdade é agir, ser protagonista, tornar-se sujeito e não objeto. E para ser livre, é preciso compreender as causas específicas dos afetos e desejos que temos, conhecer as afecções (as circunstâncias) que nos afetam, porque só conhecendo-as podemos transformá-las efetivamente, aumentando as capacidades, nossas, dos outros e do ambiente em que vivemos. Mas a liberdade não é um decreto. Ela surge com experiências, uma confluência específica de afecções, que nos faz experimentar certa alegria que aumenta tanto nossas capacidades de pensar e agir que nos permitem, por sua vez, agir sobre as próprias afecções transformando-as conscientemente, isto é, modificando as circunstâncias

Assim, o procedimento dos reacionários, que se resume a apontar “culpados”, bodes expiatórios, “pessoas com vontade má”, além de inútil, causa ainda mais ódio e reação. O erro de outro indivíduo, ou mesmo sua violência, não pode ser combatido por decreto, porque isso não faz senão transferir a violência para outro âmbito ainda mais violento e sem controle, como o poder e a hierarquia (hoje ungidos com a lamentável superstição da meritocracia, da “mão invisível” da guerra de todos contra todos chamada mercado, e da idolatria chamada Estado). O que é efetivo para combater o erro, e especialmente a violência, é apontar a esse indivíduo experiências que o permitam compreender que, se ele reduz os outros indivíduos a objetos, meios, é porque ele próprio se comporta ridiculamente como um robô, porque seus atos, que ele pensava ser livres, são meras reações completamente previsíveis às afecções que lhe ocorrem, o que faz automaticamente o ódio (e a servidão decorrente dele, a reação) ocupar a maior parte de sua existência. Em suma, contribuír para fazê-lo compreender as afecções que o afetam é o único modo de ajudá-lo a deixar de ser objeto, mudá-las e transformar ativamente a sua vida, única condição para que passe a tratar a si e aos outros como fins em si e não como meios.

E a razão? Se a razão for entendida como decreto (como em Kant), ela se resume a uma emissão de imperativos, reprimendas, que, embora muitos (ou mesmo todos) de nós possamos categoricamente concordar, praticamente ninguém pode nem quer seguir de fato na vida cotidiana. Isso porque todo decreto busca burramente passar por cima da confusão concreta que é a nossa existência prática cotidiana, social e histórica, contribuindo, na verdade, como um elemento a mais, até multiplicador, no emaranhado de reações, de servidões.

A única razão universal que pode ser efetivamente assumida e posta em prática, então, só pode ser um tipo de alegria, um tipo de amor que seja mais apaixonante do que as reações. Um amor pela autonomia, pela liberdade, pelo conhecimento, ou seja, pela virtude como algo desejado por si só, universal, livremente acessível à todos para desfrute e alegria generalizados. Decorre da razão, consequentemente, o projeto de transformar a vida cotidiana, social e histórica no sentido universal de que todos possam desenvolver suas capacidades livremente, como seres autônomos, ou, em outras palavras, a finalidade de suprimir todas as condições que levem seja que indivíduo for a aceitar ser tratado como objeto, como instrumento,  meio para um fim alheio.

Concluindo: O que está em jogo é a nossa capacidade de, nesse mundo que é um emaranhado servil de reações cegas, sermos efetivamente capazes de criar e propagar a razão e a liberdade. Para isso, vimos que um imperativo ou decreto só traz mais servidão, enquanto que provamos que só podemos propagar a razão, a virtude e a liberdade se, na vida cotidiana, provarmos que são válidos por si sós, ou seja, como amor, alegria.

humanaesfera, outubro de 2015

NOTAS:
[nota 1] No livro Fundamentação da metafísica dos costumes.

[nota 2] Aqui tratamos especificamente da proposta de liberdade naquilo que Espinosa chama de “segundo gênero de conhecimento”, exposto em Ética demonstrada à maneira geométrica, partes III, IV, V e VI.

[nota 3] Essa mistura confusa, por exemplo, explica o vício: um indivíduo imagina como causa do aumento de suas capacidades [isto é, de alegria e, portanto, amor] algo que na realidade aumenta uma parte limitada e temporária de suas capacidades [por exempo, a capacidade de ficar super-ativo ou super-relaxado, como os efeitos de certas drogas] mas que reduz suas capacidades como um todo e a longo prazo, causando tristeza e, portanto, ódio e, consequentemente, tornando-o um escravo.

Continuação destas reflexões éticas:

Abolição do trabalho e a questão do circuito produtivo global no comunismo

Traduzimos alguns trechos extraídos da intervenção de Libcom no debate “Parecon or libertarian communism?” (“Economia participativa ou comunismo libertário?”):

A ABOLIÇÃO DO TRABALHO
“Ao invés de generalizar o trabalho para medir ´com justiça´ o esforço feito na sociedade como um todo e pagar proporcionalmente, nós buscamos o movimento oposto: generalizar a atividade humana que vale por si mesma, negando a necessidade de incentivos ou sanções, negando o sistema salarial.”

“Essa generalização da atividade além da medida é o que chamamos de abolição do trabalho e da economia como uma esfera separada da vida social. A objetivo é eliminar o trabalho como uma categoria separada de atividade humana, fazendo a atividade produtiva ser satisfatória por si só. Assim, por exemplo, poderemos usar a tecnologia não apenas para aumentar a produtividade, mas também para reduzir o esforço, o tempo de trabalho, etc., porque a produção será um assunto  social, e atenderá diretamente e de forma transparente as necessidades sociais. O objetivo é a abolição do trabalho, não a sua democratização.”

“Além disso, uma sociedade que [como a economia participativa] faz da recompensa do esforço e do sacrifício um princípio fundacional não oferece nenhum incentivo para reduzir o esforço e o sacrifício. Assim como hoje, os trabalhadores buscariam esconder as inovações que reduzem o trabalho, a fim de maximizar suas recompensas (dado que eles perderiam se revelassem ter descoberto um modo de fazer as mesmas tarefas com menos esforço). Por exemplo, se eu fizesse X tarefas  e ela me desse Y créditos para sobreviver, eu não gostaria de ver a queda no meu padrão de vida simplesmente porque eu (ou outra pessoa) inventei uma nova forma de fazer a tarefa mais facilmente. Em contraste, sem salário, veríamos a redução do esforço e do sacrifício, junto com a sustentabilidade ecológica, se tornarem as forças motrizes do desenvolvimento sob o comunismo libertário (ou seja, manifestações concretas de ‘necessidade’ na máxima ´de cada um conforme as suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades’).”

“A remuneração pelo esforço e sacrifício incentiva a mentir e enganar, já que os indivíduos podem se beneficiar tanto por meios sujos quanto como honestos. As possíveis soluções para isso (teste mandatório etc) apenas criaria uma outra camada desnecessária de tarefas tecnocráticas,  mais preocupada em monitorar os trabalhadores do que em satisfazer as necessidades humanas”.

O CIRCUITO PRODUTIVO GLOBAL NO COMUNISMO

“Em contraste [com a ideia de planificação central], propomos a “produção por empuxo” [“pull production”, que contrasta com a “push production”, “produção por empurro”], que significa produção  em resposta ao consumo; a medida que os estoques vão sendo consumidos, isso sinaliza automaticamente a produção para reabastecê-los, ‘puxando’ bens através da rede logística [supply chain]. Como se percebe, não se trata da mão invisível do mercado, até porque não há dinheiro, preços e nem troca. Nossa crítica ao planejamento central não é apenas que  ele exclui a maioria de elaborar o plano (embora essa crítica seja correta, ela é limitada), mas que a própria ideia de planificar centralmente metas (cotas) para algo tão dinâmico como uma sociedade de bilhões é fundamentalmente falho, tanto em termos práticos como epistemologicamente.

Consequentemente, vemos o planejamento social racional ocorrendo pela definição da prioridade de setores e bens/serviços, desde os essenciais até o luxo. Os volumes exatos de produção  são, então, determinados localmente em resposta ao consumo, com  a alocação de recursos determinada pela prioridade relativa das indústrias, produtos e serviços em questão. Desse modo, a macro-ordem em termos de volumes reais de produção é emergente e não planificada, embora possa surgir de acordo com as prioridades do plano decidido socialmente (ao contrário da ordem emergente dos mercados, que simplesmente reflete o poder de compra e o que é lucrativo produzir, ao invés do que é necessário, ou a ordem emergente da evolução biológica, que reflete nada mais do que aptidão reprodutiva).

Os meios pelos quais nós pensamos que este processo de planejamento social deve acontecer é através de estruturas de conselhos, por delegados com mandatos revogáveis ou rotativos definidos em assembleias para tratar das decisões de alocação de recursos de acordo com as prioridades do plano social. Pode haver outras maneiras de fazer isso incorporando tecnologia (como por exemplo, qualquer pessoa ser capaz de acessar um banco de dados para atualizar suas preferências individuais, atualizando automaticamente o plano social). No entanto, uma tal base de dados em larga escala seria sem precedentes, e em qualquer caso, há provavelmente benefícios em ter discussões cara-a-cara em conselhos, em vez de escolhas individuais atomizadas. Nós estamos de mente aberta para meios melhores, mas uma estrutura de conselhos parece um bom ponto de partida.”

Continuação das reflexões deste texto: 
 Fundamentação teórica: 
 Perspectiva prática: 

Autonomia, espiral de violências e apelo à força (i.e, à classe dominante)

Frente a uma violência, é natural, compreensível, humano, que os agredidos ou vítimas reajam com ódio. Emocionados, o agredido e/ou os que se compadecem com a vítima tendem a reagir recorrendo a uma violência igual ou maior (a deles mesmos, a de uma gangue, de um gerente, da polícia, do direito ou mesmo a de um monarca cósmico absoluto imaginário). Isso pode iniciar uma espiral de represálias recíprocas que multiplica a violência e foge ao controle de todos. Até o ponto de ninguém mais se lembrar do motivo inicial, tornado irrelevante pelas sucessivas violências mútuas que se agravam cada vez mais. Tentar reparar um dano com outro dano multiplica os danos e, em última instância, faz de cada um o causador dos danos feitos a si mesmo mediante os outros, numa corrida armamentista que escraviza a todos.

Há quem argumente que, para interromper esse ciclo, é preciso “compaixão” ou “empatia”: nos compadecer com a dor do agressor porque na verdade ele teria sido antes vítima de outro agressor e assim sucessivamente, ad infinitum. Porém quem diz isso esquece que a empatia é a própria causa da espiral de violência (sob a forma de indignação). O erro do argumento da empatia é que “empatia de amor” e a “empatia de ódio” são igualmente emoções –  e emoções são reações espontâneas (se não forem, são falsas emoções), ou seja, não dependem de nenhum argumento.

Sem dúvida, a paixão é o que nos move e não há como escapar disso. O que fazer então? Uma possível resposta é dada pelos filósofos ultra-iluministas Benedito de Espinoza e Jean Meslier: entre as paixões humanas está a paixão pela liberdade – a razão. A razão é ação, e não reação (todas as demais emoções não passam de reações), porque ela busca modificar as causas, não reagir aos efeitos; busca transformar as condições de existência, e não escolher entre caminhos pré-estabelecidos; busca subverter o status quo, o tabuleiro, não mover mais uma vez as peças de um jogo suicida e escravizador. A questão é: a paixão pela liberdade, pela autonomia, é capaz de superar as outras emoções?  E como agir, isto é, como criar um ambiente onde as emoções possam se expressar da maneira mais enriquecedora e feliz possível?

Seja como for, quando ocorre uma violência, se queremos evitar o surgimento de uma espiral de violências – que só serve para suprimir a autonomia e legitimar o poder da classe dominante, ou seja, a adesão à falsa garantia dada por alguma violência ainda mais ameaçadora, tal como a gangue, o gerente, a polícia, o direito, as forças armadas e o Estado -, só nos resta abandonar toda e qualquer ideia de punição (e recompensa), porque, como vimos, ela não tem o menor fundamento, é pura irracionalidade. *

É preciso ao menos que saibamos ser concretos:

– Quem agrediu pode agredir outra vez? Em outros termos: a agressão dele é um hábito? E se é um hábito – um vício -, ele poderia (ter liberdade para) não agredir da próxima vez?

– Mas se ele teve liberdade para escolher agredir, que razão o motivou a fazer isso? A agressão foi motivada por algo transitório, improvável de se repetir? Ou motivada por algo constante ou repetível? Como atacar esse motivo?

– Se a agressão dele é um hábito, o que fazer? Isolá-lo, para que não voltemos a sofrer agressões dele? Mas como ajudá-lo a se libertar do hábito de agredir que o escraviza?

– E o agredido, como tratá-lo?

Em suma, questões materialistas práticas incontornáveis.

humanaesfera, junho de 2015
Nota:
* Falar em “livre arbítrio”, “intenção”, “vontade”, “falta de vontade”,  não só é perfeitamente inútil e oco mas extremamente nocivo. O apelo à vontade serve apenas para atribuir culpa, causando ainda mais raiva e ressentimento. Quando buscamos parar de fumar, por exemplo, a vontade não é nada “em si”, porque o que determina essa vontade é, não ela mesma, mas as paixões de parar de fumar (que pode ser uma paixão pela autonomia que parar de fumar trará) frente às paixões cada vez mais tristes (servis) de continuar fumando (prováveis doenças, interrupção constante das atividades para suprir o vício, mau cheiro nas interações sociais etc.). Se a vontade é algo, ela não passa do hábito – que é uma paixão “animal”, pavlovianamente adestrada – de se focalizar para alcançar qualquer fim, seja ele qual for. Enquanto os fins sempre são formados pelas livres interações, combinações ou associações das paixões, nunca pela “bestial” vontade “em si”.

Bibliografia:
– Reflexões sobre as causas da liberdade e da opressão Social – Simone Weil
– Ética – Benedito de Espinoza
– Ateismo e revolta: os manuscritos do padre Jean Meslier – Paulo Jonas de Lima Piva
– Le Humanisphère – Joseph Déjacque

Ver também:

– Materialismo 

Contra as recompensas e punições (contra a meritocracia, contra a coerção)

“A recompensa da virtude é a própria virtude e o castigo reservado à desrazão e ao abandono de si é precisamente a desrazão. Quem quer recompensas e castigos não encontra nada que lhe apraza na virtude mesma e no conhecimento, e evita os maus atos com hesitação, forçando-se como um escravo. Ele espera que sua servidão seja paga a um preço que a seus olhos vale muito mais do que o amor: tanto mais caro quanto mais aversão ele tem ao bem e se coage mais.” Baruch Espinosa (resumo e livre adaptação de um argumento encontrado na Carta 43, de  Espinosa  a Jacob Osten, fevereiro de 1671, Correspodência).

“Para propagar a virtude, é melhor o encorajamento e a palavra persuasiva do que a lei e a coerção. Quem evita ser injusto por temor à lei, provavelmente cometerá o mal em segredo; quem, ao contrario, for levado ao dever pela convicção, provavelmente não será injusto nem em segredo e nem abertamente.” Demócrito de Abdera (fragmento DK 68 B 181)

Recompensas e punições pressupõem uma violência (poder) que despojou os seres humanos de suas próprias condições de existência, impedindo-os de existirem por si mesmos, autonomamente,  e permitindo-a prometer (recompensar) e ameaçar (punir). O medo e a esperança; o chicote e a carne lançada às bestas.

Combater esse poder só é possível se abolirmos a propriedade privada das condições de existência (meios de vida e de produção), tornando-as gratuitas, para que desenvolvamo-nos e as nossas produções como atividades e fruições que valem por si mesmas, manifestações multilaterais de nossas faculdades, desejos, necessidades, paixões… livres, ou seja, sem nenhuma força que possa estar na posição (classes) de nos submeter à recompensas nem punições. Em outras palavras, sem o engodo da troca de equivalentes, seja hierárquico ou mercantil, já que na verdade são sempre pseudo-equivalentes: sobretrabalho e mais-valia. Recompensas e punições serão suplantadas pela alegria ou tristeza intrínsecas ao experimento de cada um nessas atividades, produções e fruições livres, únicos móveis de  toda composição e dissolução na livre associação em escala mundial que chamamos comunismo.

Mas os paranóicos e apavorados só enxergam o mundo através dos óculos da ameaça e da recompensa (eles querem o fim da “impunidade” e a retribuição de seus “méritos”). Então, vejamos melhor: qual a relação entre um ato (“bem” ou “mal”) e sua sanção (recompensa ou punição)?  Por mais que se procure, simplesmente não há nenhuma relação. A única coisa que os liga é, necessariamente, uma força totalmente extrínseca ao ato e ao móvel do ato. Logo, a conclusão é evidente: a relação entre “crime” e punição (e entre servilismo e recompensa) é sempre arbitrária, exterior, irracional, inútil. (E quando as crianças são “educadas” assim, elas apenas são ensinadas, e isso na melhor das hipóteses, que é aceitável que as coisas “se resolvam” mediante chantagens e porrada – e quando crescerem provavelmente engrossarão o partido da ordem dos linchadores de plantão “em defesa da família”).

Outros defendem que só as regras ou a lei (“o estado de direito”, ou mesmo as “leis universais da razão” de Kant) impedirão que recompensas e punições sejam arbitrárias. Porém, além de a idéia de equivalência entre ato e sanção ser em si arbitrária (uma pura troca de alhos por bugalhos), é impossível que a lei possa por conta própria andar por aí para aplicar sanções (recompensas e punições), pois afinal a lei é só um monte de papéis. A lei só pode ser efetiva se aplicada por uma força que não é a lei, que é portanto literalmente fora da lei, acima da lei: a polícia, o pai (ou mãe), o chefe, o gerente, o presidente… na prática, a arbitrariedade sempre reina, como já estamos fartos de saber (veja, por exemplo, o Brasil, onde a pena de morte e a tortura são ilegais, oficialmente não existem,  mas que, na prática, é um dos países onde elas são mais praticadas no mundo).

Quanto ao estado de direito, um trecho de Walter Benjamin:

“[…] uma solução totalmente não violenta de conflitos nunca poderá desembocar num contrato jurídico. Por mais pacífico que tenha sido o clima que levou as partes a firmá-lo, um contrato desse tipo pode acabar sempre por conduzir à violência, porque concede a cada uma delas o direito de reclamar o recurso a alguma forma de violência contra a outra, no caso de esta violar o contrato. E não é só isso: a própria origem de todo contrato aponta para a violência, tal como o seu desfecho. Enquanto poder que institui o Direito, esta não precisa estar diretamente presente nele, mas está nele representada desde que o poder que garante o contrato jurídico tenha, por seu lado, origem violenta, ainda que não tenha sido aplicada legalmente no contrato com recurso à violência.  […] Por mais desejável e satisfatório que, apesar de tudo, seja um parlamento que funcione bem, por comparação com outros regimes, a discussão dos meios, por princípio pacíficos, do entendimento político não poderá passar pelo parlamentarismo. Na verdade, o que este consegue alcançar no que se refere a questões vitais são apenas aquelas ordens jurídicas reféns da violência à entrada e à saída. “ Walter Benjamin, Sobre a crítica do poder como violência

Há também os que, impregnados de religião e espiritualidade, acreditam numa entidade chamada “mal”, “maldade”, e dizem que o homem (assim como a matéria e o mundo como um todo) por si mesmo é “mal”. Não é a toa que os lugares do mundo onde a religiosidade é mais intensa são os mais violentos, pois a expectativa a priori da maldade nas relações humanas, numa desconfiança mútua generalizada, torna real esse fantasma (“maldade”) na prática. Para eles, “o bem” é auto-sacrifício, auto-anulação; isto é, para eles o “bem” é algo repulsivo, que justamente por não ter nenhum valor em si mesmo, vale por outra coisa, é “mérito” (que serve para reencarnar melhor, chegar ao nirvana, ou ascender ao paraíso e evitar o inferno, ou ser promovido pelo chefe). Contra isso defendemos uma ética materialista:

O homem é o egoísmo; sem egoísmo, o homem não existiria. O egoísmo é o móbil de todas as suas ações, o motor de todos os seus pensamentos.[…]
É para crescer, para aumentar o círculo de sua influência que o homem leva alto a sua face e atira ao longe o seu olhar; é em vista de satisfações pessoais que ele caminha para a conquista de satisfações coletivas. É para si mesmo, como indivíduo, que ele quer participar da efervescência viva da felicidade geral; é para si mesmo que ele fica aflito pelo sofrimento dos outros. Seu egoísmo, sem cessar exigido pelo instinto de sua conservação progressiva e pelo sentimento de solidariedade que o liga a seus semelhantes – seu egoísmo solicita as perpétuas emanações de sua existência na existência dos outros. É isto que a velha sociedade chama impropriamente de devotamento e que não é senão espelhamento [spéculation], espelhamento que é tanto mais humanitário quanto é mais inteligente, que é tanto mais humanicida quanto mais é imbecil.(…)
Humanamente, não é possível fazer um movimento, um gesto da mão, do coração ou do cérebro, sem que a sensação se repercuta de uma pessoa para outra como um choque elétrico. E isso tem lugar no estado de comunidade anárquica, no estado de natureza livre e inteligente. […]

A coerção é a mãe de todos os vícios. Por isso, é banido pela razão do território da humanisfera. O egoísmo, naturalmente, o egoísmo inteligente é muito desenvolvido para que alguém pense em forçar seu próximo. É por egoísmo que eles trocam bons atos.

[…]Nós todos nascemos com o germe de todas as faculdades […], as circunstâncias exteriores agem diretamente sobre nós. Conforme nossas faculdades são ou foram expostas a sua influência, elas adquirem um desenvolvimento maior ou menor e se formam de uma ou de outra maneira.  […]

O meio onde nós vivemos e a diversidade de pontos de vista onde se colocam os homens e que faz com que ninguém possa ver as coisas sob o mesmo aspecto, explicam […] a diversidade de suas paixões e aptidões.” Joseph Déjacque (Le Humanisphère)

humanaesfera, maio de 2014

Trechos do rascunho de um artigo sobre o livro de Friedrich List: Das Nationale System der Politischen Oekonomie, por Karl Marx (março de 1845)

Tradução para o português por Humanaesfera a partir do inglês (fonte: Draft of an Article on Friedrich List’s book: Das Nationale System der Politischen Oekonomie).

[Sobre a abolição do trabalho:]

“[…] o trabalhador é o escravo do capital, ele é uma “mercadoria”, um valor de troca cujo nível mais alto ou mais baixo, cuja alta ou baixa, depende da concorrência, da oferta e da procura; […] sua atividade não é uma livre manifestação de sua vida humana, mas é, sim, uma mascatear de suas forças, uma alienação (venda) para o capital de suas habilidades unilateralmente desenvolvidas, em suma,  ela é “trabalho”. Esquece-se disso. O “trabalho” é a base viva da propriedade privada, é a propriedade privada enquanto fonte criativa de si mesma. A propriedade privada não passa de trabalho objetivado. Se desejamos dar um golpe mortal na propriedade privada, é preciso atacá-la não apenas enquanto um estado de coisas material, mas também como atividade, como trabalho. É um dos maiores equívocos falar em trabalho livre, humano, social,  trabalho sem propriedade privada. O “trabalho”  por sua própria natureza é atividade não livre, desumana, não social, determinada pela propriedade privada e criadora da propriedade privada. Por isso, a abolição da propriedade privada se tornará uma realidade somente quando ela for concebida como abolição do “trabalho” (uma abolição que, é claro, só se tornou possível como resultado do próprio trabalho, ou seja, tornou-se possível como resultado da atividade material da sociedade e que em nenhum caso deve ser concebida como a substituição de uma categoria por outra). Uma “organização do trabalho”, portanto, é uma contradição nos termos. A melhor organização que ao trabalho pode ser dada é a atual organização, a livre concorrência, a dissolução de toda a sua prévia organização aparentemente “social”.”

[Contra o nacionalismo:]

“O burguês diz: é claro, a teoria dos valores de troca não deve ser questionada dentro do país, a maioria, na nação, deve permanecer um mero “valor de troca”, uma “mercadoria” que deve encontrar seu próprio comprador, e que não é vendida, mas que vende a si mesma. Em relação a vocês proletários, e até mesmo em nossas relações mútuas, consideremos a nós mesmos como valores de troca, aqui a lei da venda universal é válida. Mas em relação a outras nações, devemos interromper a operação dessa lei. Como uma nação, não podemos nos vender a outras nações. […]”

“Então, o que o filisteu alemão quer? Ele quer ser um burguês, um explorador, dentro do país, mas ele também quer não ser explorado fora do país. Ele se infla como “nação” em relação aos países estrangeiros e diz: eu não me submeterei às leis da concorrência; isso seria contrário à minha dignidade nacional; enquanto nação, sou superior ao mascateio.

A nacionalidade do trabalhador não é nem francesa, nem inglesa, nem alemã – é o trabalhoa escravidão livre, a venda de si mesmo. Seu governo não é nem francês, nem inglês, nem alemão – é o capital. Seu ar nativo não é nem francês, nem alemão nem Inglês – é o ar da fábrica. A terra que lhe pertence não é nem francesa, nem inglesa, nem alemã, ela está alguns palmos debaixo do solo. […]”

“Ele [o burguês] está disposto a reconhecer a força da sociedade burguesa só na medida em que essa força está de acordo com os seus interesses, os interesses de sua classe! Ele não quer ser vítima de uma força a qual ele quer sacrificar outros, e para a qual ele se sacrifica dentro de seu próprio país! […]

Provar-lhe-emos [ao burguês] que a venda de si mesmo dentro do país tem como conseqüência necessária a venda fora, que a concorrência, que dá-lhe poder dentro do país, não pode impedi-lo de se tornar impotente fora do país; que o Estado, que subordina à sociedade burguesa dentro do país, não pode protegê-lo da ação da sociedade burguesa fora do país.

Por mais que o burguês individual lute contra os outros, enquanto classe o burguês têm um interesse comum, e essa comunidade de interesse, que é dirigida contra o proletariado dentro do país, é dirigida contra a burguesia de outras nações fora do país. É isto que o burguês chama de nacionalidade.”

[A indústria invoca potências que a superam – forças naturais, forças produtivas e proletariado]

“A indústria pode ser considerada como uma grande oficina em que o homem primeiro toma posse de suas próprias forças e das forças da natureza, se objetiva e cria para si mesmo as condições para uma existência humana. Quando a indústria é considerada desta forma, abstraímos as circunstâncias em que ela opera hoje, e nas quais existe como indústria; nosso ponto de vista não está no interior da época industrial, mas sobre ela; a indústria é considerada não pelo que ela é para o homem de hoje, mas pelo que hoje o homem é para a história humana, o que ele é historicamente; não é a sua existência atual (não a indústria como tal) que é reconhecida, mas sim a potência que a indústria tem sem saber ou querer e que a destrói e cria a base para uma existência humana.[…]”

“Esta apreciação da indústria é, ao mesmo tempo, o reconhecimento de que é chegada a hora de acabar com ela, ou da abolição das condições materiais e sociais em que a humanidade tinha que desenvolver suas habilidades como um escravo. Pois desde que a indústria não é mais considerada como um interesse mercantil, mas como o desenvolvimento do homem,  é o homem, no lugar do interesse mercantil, que é tornado princípio, e àquilo que na indústria pode se desenvolver apenas em contradição com a própria indústria é dado a base que está em harmonia com o que está para ser desenvolvido.”

“A escola de Saint-Simon deu-nos um exemplo instrutivo do que ocorre quando a força produtiva que a indústria cria inconscientemente e contra a sua vontade é creditada à indústria atual e as duas coisas são confundidas: a indústria e as forçasque a indústria traz à existência inconscientemente e sem a sua vontade, mas que só se tornarão forças humanas, a potência do homem, quando a indústria for abolida. […]  As forças da natureza e as forças sociais que a indústria traz à existência (que ela invoca) tem com ela a mesma relação que o proletariado tem. Hoje eles ainda são os escravos do burguês, que não vê neles nada além de instrumentos (os suportes) de sua cobiça suja (egoísta) pelo lucro; amanhã eles vão quebrar suas cadeias e se revelar como os portadores do desenvolvimento humano que vai lançá-los pelos ares junto com sua indústria, que assume essa casca suja exterior – que ele considera como a sua essência – só até que o núcleo humano ganhe força suficiente para estourar esta carapaça e aparecer em sua forma própria. Amanhã eles arrebentarão as cadeias pelas quais o burguês os separa do homem e assim os distorce (transforma) de um vínculo social real em grilhões da sociedade.

A escola de Saint-Simon glorificou em ditirambos a força produtiva da indústria. As forças que a indústria chama a existir ela confundiu com a própria indústria, isto é, com as condições atuais de existência que a indústria dá a essas forças. […] O primeiro passo para quebrar o encantamento com indústria foi abstrair as condições, os grilhões do dinheiro, em que as forças da indústria operam hoje e examinar essas forças em si mesmas. Este foi o primeiro chamado para o povo emancipar sua indústria da venda e compreender a indústria de hoje como uma época de transição. […].

Eles [os saint-simonianos] chegaram  […] a atacar o valor de troca, a propriedade privada, a organização da sociedade atual. Eles propuseram a associação no lugar da competição. Mas eles foram punidos por seu erro original. Não somente a confusão acima mencionada os levou à ilusão ainda maior de ver no burguês sujo um sacerdote, mas também fez com que eles, após as primeiras lutas externas, voltassem a cair na velha ilusão (confusão) – mas agora hipocritamente, porque precisamente no curso da luta a contradição das duas forças que haviam confundido tornou-se manifesta. Sua glorificação da indústria (das forças produtivas da indústria) tornou-se glorificação da burguesia, e Monsieur Michel Chevalier, Monsieur Duveyrier, Monsieur Dunoyer ridicularizaram a si mesmos e à burguesia, aos olhos de toda a Europa – após o que os ovos podres que história lançou na cara deles transformaram-se pela magia da burguesia em ovos de ouro, uma vez que o primeiro dos nomeados acima reteve as velhas frases, mas preenchidas com o conteúdo do regime burguês atual, o segundo é ele próprio engajado no mascateio em uma escala de atacado e preside a venda de jornais franceses, enquanto o terceiro se tornou o apologista mais raivoso do atual estado de coisas e supera em desumanidade (em falta de vergonha) todos os economistas ingleses e franceses do passado.”

Veja também mais trechos de outros clássicos:

Marx comunista individualista! (trechos sobre o indivíduo em Marx) – Karl Marx

Comentários sobre James Mill (trechos) (1844) – Karl Marx

A Humanisfera (trechos) – Utopia Anárquica (1857) – Joseph Déjacque

Sobre a troca (texto completo) (1858) – Joseph Déjacque

A atração apaixonada (trechos) – Charles Fourier

Anarquia e Comunismo (texto completo) (1880) – Carlo Cafiero

Trechos dos Comentários sobre Os Elementos de Economia Política de James Mill, por Karl Marx (1844)

Tradução para o português por Humanaesfera a partir do inglês ( fonte: Comments on James Mill by Karl Marx ) e do espanhol (fonte: o livro Páginas Malditas de Marx). Aparentemente, os comentários sobre James Mill (também conhecidos como Notas sobre James Mill) por Marx nunca foram  publicados em português. 

“Só o que é monopolizável tem um preço.” (Comentário de Karl Marx ao Esboço de Economia Política de Friedrich Engels, 1844)

“[…] A característica originária, determinante, da propriedade privada é o monopólio, portanto, quando ela cria uma constituição política, é a do monopólio. O monopólio consumado é a concorrência.”

“O movimento mediador do homem que troca não é um movimento social, humano, não é uma relação humana, mas a relação abstrata da propriedade privada com a propriedade privada, e essa relaçãoabstrata é o valor cuja existência em ato como valor constitui o dinheiro. A relação social da propriedade privada com a propriedade privada já é uma relação em que a propriedade privada é alienada de si mesma. A forma de existência para si dessa relação, o dinheiro, é, portanto, a alienação da propriedade privada, a abstração de sua natureza pessoal, específica.”

“Em ambos os lados, portanto, a troca é necessariamente mediada pelo objeto que cada lado produz e possui. A relação ideal com os respectivos objetos da nossa produção é, evidentemente, a necessidade mútua. Mas a relação realverdadeira, que realmente ocorre e produz efeitos, é apenas a posse mutuamente exclusiva de nossos respectivos produtos. O que dá à tua necessidade de meu artigo valor,importância e efetividade para mim é apenas o teu objeto como o equivalente do meu objeto. Nosso produto recíproco, portanto, é o meio, o mediador, oinstrumento, o poder reconhecido de nossas necessidades mútuas. Tua demanda e o equivalente de tua posse, portanto, são para mim termos que são iguais em importância e validade, e tua demanda só adquire um significado, devido a ter um efeito, quando ela tem um significado e efeito em relação a mim. Como um mero ser humano, sem este instrumento, tua demanda é uma aspiração frustrada de tua parte e uma ideia que não existe para mim. Como um ser humano, portanto, você não tem nenhuma relação com meu objeto, porque eu mesmo não tenho nenhuma relação humana com ele. Mas o meio é o verdadeiro poder sobre o objeto e, portanto, nós consideramos mutuamente nossos produtos como o poder de cada um sobre o outro e sobre nós mesmos. Ou seja, o nosso próprio produto se levantou contra nós; ele parecia ser nossa propriedade, mas de fato nós somos propriedade dele. Nós mesmos somos excluídos da verdadeira propriedade porque nossa propriedade exclui os outros homens.

A única linguagem inteligível em que conversamos um com o outro consiste nos nossos objetos em suas relações entre si. Nós não entendemos uma linguagem humana, e ela permanece sem efeito. Ela seria considerada e sentida como um pedido, uma súplica, e, portanto, uma humilhação, e, conseqüentemente, pronunciada com um sentimento de vergonha, de degradação. Enquanto que a outra parte a receberia como descaramento ou loucura e rejeitada como tal. Estamos de tal forma mutuamente estranhados do ser humano que a sua linguagem direta nos parece uma violação da dignidade humana, ao passo que a linguagem estranhada dos valores coisificados parece a afirmação justa da dignidade humana, auto-confiante e consciente de si.”

“Nosso valor mútuo é para nós o valor de nossos mútuos objetos. Portanto, para nós o próprio homem é reciprocamente sem qualquer valor.

Suponhamos que tivéssemos produzido como seres humanos. Cada um de nós afirmaria duplamente a si mesmo e a outra pessoa:

1) Na minha produção, eu teria tornado objetiva a minha individualidade, o seu caráter específico e, portanto, não só teria desfrutado ao expressarminha vida individual durante a atividade, mas também, ao ver o objeto, eu teria o prazer individual de saber que a minha personalidade é objetiva, perceptível aos sentidos e, portanto, um poder fora de qualquer dúvida.

2) O teu desfrute ou uso de meu produto me proporcionaria diretamente o prazer de me saber satisfazendo com minha atividade uma necessidade humana, isto é, de ter tornado objetivo o ser humano, e de ter, assim, criado um objeto correspondente à necessidade de outro ser humano.

3) Eu teria sido para você o mediador entre você e o gênero humano e, portanto, seria reconhecido e sentido por você como um preenchimento da tua própria natureza essencial e como uma parte necessária de você mesmo e, consequentemente, eu me sentiria confirmado tanto no teu pensamento como no teu amor.

4) Teria tido a alegria de, na expressão individual de minha vida, eu ter criado diretamente a expressão de tua vida, e, portanto, de na minha atividade individual, eu ter diretamente confirmado e realizado o meu verdadeiro ser, o meu ser humano, meu ser multilateral em comum universal [gemeinwesen].

Nossas produções seriam múltiplos espelhos em que veríamos refletida a nossa natureza essencial.

Esta relação além disso seria recíproca; o que ocorre do meu lado ocorreria do teu.

Vamos analisar os vários fatores vistos em nossa hipótese:

Minha atividade seria uma livre manifestação da vida, portanto, um desfrute davida. Ao contrário, pressupondo a propriedade privada, a minha atividade é umaalienação da vida, pois eu trabalho para viver, para adquirir meios de vida. Meu trabalho não é a minha vida.

Em segundo lugar, a natureza específica da minha individualidade, portanto, iria se afirmar na minha atividade, uma vez que esta seria uma afirmação da minha vidaindividual. A atividade portanto seria propriedade verdadeiraativa. Em contraste, pressupondo a propriedade privada, minha individualidade é alienada a tal ponto que essa atividade torna-se, ao contrário, odiosa para mim, um suplício, e mais que atividade, uma aparência dela; daí que é uma atividade forçada, imposta a mim mediante uma necessidade extrínseca e acidental, e não por uma necessidadeinterior e determinada.”

Veja também mais trechos de outros clássicos:

Marx comunista individualista! (trechos sobre o indivíduo em Marx) – Karl Marx

Rascunho de artigo sobre um livro de Friedrich List (trechos)(1845) – Karl Marx
A atração apaixonada (trechos) – Charles Fourier

L´Humanitaire (1841), a primeira publicação comunista libertária

A Humanisfera (trechos) – Utopia Anárquica (1857) – Joseph Déjacque

Sobre a troca (texto completo) (1858) – Joseph Déjacque

Anarquia e Comunismo (texto completo) (1880) – Carlo Cafiero

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